E PELA 10ª VEZ, CABO ESPICHEL OUTRA VEZ - 5ª PARTE
Acredito na entidade DGPC e nas exigências que a mesma introduzirá na análise sobre a autorização de obras a realizar no Santuário, nomeadamente no edificado e estruturas existentes. No entanto, é sobre o que poderá ou não vir a ocorrer no espaço exterior, na área concessionada de terreno igual a 12.500m2, que irei dedicar algumas considerações.
ACESSOS E ESTACIONAMENTOS
- Durante anos, a Autarquia lutou pela retirada de acessos viários e de automóveis do terreiro central, do espaço compreendido entre o Cruzeiro e o acesso à Casa da Água, do espaço a norte da ala norte das hospedarias (caminho sobranceiro à praia dos Lagosteiros que contorna a Casa da Ópera e se dirige à Ermida) e, do terreiro a poente (atrás da Igreja e ocupando todo o espaço entre a arriba, linha de água a sul e, a Ermida);
- Agora, no pretexto de que a concessão do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel para fins turísticos resultará na “criação de emprego e desenvolvimento económico”, os acessos viários e os automóveis voltam a ocupar o que demorou anos, a desocupar. No ANEXO II – PEÇAS DESENHADAS (que integra o Anexo 2 – Termos de referência do projecto (estudo da Direcção Geral do Património Cultural), surge a planta D5 – Planta de Acessibilidades. Nesta, são definidos três acessos viários a três zonas de estacionamento:
- o primeiro, localizado a sul, logo ao lado do estacionamento que a CMSesimbra efectuou e, atrás daquelas que são umas ruínas anexas à ala sul das hospedarias.
- o segundo, num acesso viário a sul, efectuado dentro de uma linha de água (caminho existente atrás das roulottes), contorna toda a ala sul das hospedarias e sobe a encosta na direcção da Igreja (caminho existente estreito, perigoso, íngreme e acidentado); passando a Igreja, ficará ali colado às ruínas existentes e quase em frente ao acesso lateral norte, que liga o terreiro central à Ermida, passando entre a Igreja e as ruínas (através daqueles caminhos que a CMSesimbra efectuou em 2015, referindo que os mesmos seriam o percurso acessível para pessoas com mobilidade condicionada, entre a Igreja e a Ermida da Memória);
- o terceiro, num acesso viário que irá atravessar a frente do terreiro, entre o Cruzeiro e a Casa da Água, seguindo para norte e localizado atrás da ala norte das hospedarias, pendurado sobre a encosta que desce para a praia dos Lagosteiros;
- Convém lembrar aqui que, todos os elementos do programa de concurso repetem consecutivamente a obrigatoriedade de cumprir os regimes jurídicos definidos pela Rede Natura 2000 e Reserva Ecológica Nacional. Ora, de acordo com estes regimes jurídicos, são proibidas:
- obras de construção e ampliação;
- vias de comunicação;
- escavações e aterros.
- Ou seja, é proibido em áreas de REN e Rede Natura 2000, construir, escavar, aterrar e até, vias de comunicação. Quer isto dizer que nenhum dos parques de estacionamento propostos e nenhum dos acessos viários propostos será possível de concretizar (digo eu) dado que a localização dos mesmos viola os regimes jurídicos da REN e Rede Natura 2000.
- Acresce que, sendo Rede Natura 2000, obrigatoriamente terá de ser efectuada uma avaliação de incidências ambientais, dado que o projecto de concessão do Santuário, não resulta (e cito) “da gestão de um sítio de interesse comunitário de uma zona especial de conservação ou de uma zona de protecção especial e não necessários para essa gestão, mas susceptíveis de afectar essa zona de forma significativa”.
- Acresce também que, o POPNA, classifica o Cabo Espichel como “espaços non aedificandi.” Sendo que, e desde 1963, todo o espaço circundante ao Santuário está classificado como “zona non aedificandi".
Interpreto o Caderno de Encargos, nomeadamente em relacção ao programa proposto e as respectivas peças desenhadas, apenas como orientações para aquilo que poderá vir a ser “um empreendimento turístico de qualidade elevada.”
Estranhamente, em nenhuma das peças escritas ou desenhadas é referido o número de quartos (alojamentos) que, antes da abertura do concurso, corresponderiam a cerca de 66. Saliento também o facto de não estar definida uma área de construção máxima, sendo que antes da abertura do concurso, era definida uma área bruta total de construção igual a 5.937m2. Os dados disponibilizados apresentam apenas uma área de implantação edificada (3.400m2) que corresponde e cito: “às áreas de ambas as alas, casa real e casa da ópera.”
Apresenta também uma área aproximada de 12.500m2 de terreno a afectar ao uso turístico (à concessão). Pergunto: sendo uma área de terreno sobre a qual o concessionário irá pagar uma renda, não tem direito a fazer nessa área de terreno absolutamente nada? Nada de nada? Se assim é, qual será a justificação de concessionar mais de 1ha de terreno se depois o mesmo, apesar de estar concessionado (entenda-se ‘privado’) é público? (Imaginem alguém que paga uma área de esplanada adjacente ao seu restaurante. Mas, nessa área de esplanada, apesar de estar concessionada (entenda-se ‘privada’), o proprietário não pode fazer rigorosamente nada, a não ser pagar a taxa à Câmara. Não pode colocar mesas, nem cadeiras, nem chapéus-de-sol. E se atendermos àquelas que parecem ser as novas regras de ocupação de espaço público, também não vai poder colocar estrados de madeira, nem vedações, nem sistemas de ensombramento. Porque a sua área de esplanada é pública e de “uso partilhado”.)
Dos quatro níveis de protecção definidos, destaco a protecção de “Nível 2” que autoriza o alargamento dos vãos na fachada norte da ala norte das hospedarias e também, dos vãos na fachada sul da ala sul das hospedarias, proibindo a alteração de volumetria. (Em nenhum momento são definidas quaisquer tipo de regras ou orientações sobre esta possibilidade de alargamento de vãos. Talvez e neste caso, seja aplicável o pedido de “consciência” ao futuro concessionário. E claro, na “medida do possível.”)
Destaco também a protecção de “Nível 3” que permite a alteração de volumetrias, fachadas e vãos, naquela construção em ruína, adjacente à ala sul das hospedarias, não definindo qualquer regra em relação à cércea ou número de pisos. (Não define também, uma área máxima de construção para essa alteração, sendo que mais uma vez, será aplicável o pedido de “consciência” ao futuro concessionário. E claro, na “medida do possível.”)
Por fim, e tratando-se de “um empreendimento turístico de qualidade elevada”, obedecerá a um conjunto de requisitos obrigatórios (que referi na 3ª parte), nomeadamente para garantir a climatização de todos os espaços interiores e aquecimento (painéis solares, ar-condicionado,…), assim como de toda a maquinaria, equipamentos e instalações técnicas necessárias para o seu bom funcionamento (refiro-me por exemplo ao bom funcionamento de cozinhas e restaurantes: extractores de fumos,…), sendo que este tipo de instalações técnicas estão proibidas de instalar nas coberturas (tendo em vista a salvaguardada na continuidade da leitura dos telhados tradicionais) e nas fachadas voltadas para a rua. Não é referida outra localização para estas necessárias áreas técnicas. Acresce que, para além destas, terá de haver também, um local adequado para a recolha selectiva de lixos (não só do hotel mas também dos vários espaços de restauração e afins). E também, todas as infra-estruturas nomeadamente de electricidade e de telecomunicações (que se espera, não venham a encher as fachadas de caixas e caixinhas) assim como o abastecimento de gás (botijas?) ou outro combustível.
Em resumo, e reforçando um pedido constante neste programa do procedimento do concurso público: é fundamental que o Concessionário tenha “consciência” e consiga “na medida do possível”, “respeitar o ambiente religioso e o interesse cultural” assim como “o espírito do lugar e a história do Santuário.”
Volto a referir que não tenho nada, absolutamente nada contra a recuperação e reabilitação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel. No entanto, sou completamente contra esta decisão de transformar o Santuário num hotel. Sou completamente contra o atravessamento do espaço do Santuário por viaturas de hóspedes. Sou completamente contra a criação de três parques de estacionamento que, para além de estarem localizados em área de Reserva Ecológica Nacional e em “zona non aedificandi”, constituir-se-ão como elementos dissonantes, com impactos brutais na paisagem natural e no ambiente religioso, histórico e cultural que é o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel. Considero esta hipótese de consolidar estes três novos parques de estacionamento nas localizações previstas, um retrocesso gravíssimo e inexplicável, face ao que a Câmara Municipal lutou, durante anos, para eliminar.
Sou completamente contra o facto de, e mais uma vez, a proposta de Recuperação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel não ser apresentada como um todo, integrando não só as construções existentes e em ruínas mas também, toda a envolvente não construída (e que integra, entre outros, património geológico e espeleológico). Neste programa REVIVE, e mais uma vez, o Santuário é abordado como se estivesse resumido às alas norte e sul das Hospedarias e, ao Terreiro Central.
Sou completamente contra o facto de a Ermida surgir apenas como um elemento de somenos importância, ali pendurada na encosta norte, e de “uso partilhado.” Sou completamente contra o facto da Casa da Água (depois de todo o investimento que foi feito com dinheiros públicos) surgir esquecida e reduzida à legenda “sistema de abastecimento de água” de “uso partilhado”. Sou completamente contra o facto de a Igreja ser completamente esquecida, ignorando por completo a eventual necessidade de uma análise estrutural e funcional (refiro-me neste ‘funcional’ às infraestruturas existentes).
Sou completamente contra o Regulamento proposto para o Terreiro Central, que proibindo, exclui a espontaneidade, a religiosidade, a fé, a crença, de todos os círios e peregrinos que não ‘pertencem’ à Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel.
Termino com um dos parágrafos do Anexo 2 – Termos de referência do Projecto (Estudo da Direcção Geral do Património Cultural): “Tanto a Diocese de Setúbal como o município organizam romarias e actividades no local, utilizando a Igreja de Nossa Senhora do Cabo e o terreiro. Isto significa que o recinto central fica fora da afectação, sendo que a sua manutenção ficará a cargo da Câmara Municipal de Sesimbra. Tendo em consideração de que se trata de um espaço com grande carga religiosa, será a Diocese a autorizar a realização de qualquer evento.”
Não sei quais são as romarias e actividades que a Diocese de Setúbal e o Município organizam no Terreiro Central. O regulamento do terreiro central (Anexo 4), para além de contrariar o que acima transcrevi, remete para um “Anexo I” inexistente, no qual constariam a lista de romarias e actividades promovidas quer pela Diocese, quer pela Autarquia.
De fora destas romarias e actividades, e por isso dependentes de autorização da Diocese de Setúbal, (dado que as mesmas não ‘pertencem’ nem à Autarquia nem à Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel – entenda-se Diocese de Setúbal), ficam as romarias e actividades promovidas pela Confraria do Círio dos Saloios de Nossa Senhora do Cabo Espichel, integrando 26 paróquias (círios) da margem norte do Tejo. Ficam também de fora as romarias e actividades do círio de Palmela (também não pertence nem à Autarquia nem à Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel – entenda-se Diocese de Setúbal). E, no caso de Sesimbra, aquele que realiza a festa anual sempre no último fim-de-semana de Setembro: o círio dos pescadores de Sesimbra (também não pertence nem à Autarquia nem à Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel – entenda-se Diocese de Setúbal).
Avançar para um processo de recuperação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, não envolvendo todos os intervenientes que mantêm o rito, o culto, a fé, será (na minha opinião) catastrófico, não só para a dinâmica do Santuário como para o “empreendimento turístico de qualidade elevada.”
O processo deveria ter sido participativo, publicitado e divulgado para que todos pudessem ter contribuído para uma solução o mais consensual possível. O processo deveria ter sido integrador de todos os círios existentes e que continuam a celebrar a Nossa Senhora do Cabo Espichel, dedicando-lhe romarias e procissões.
Porque, conforme já referi em anteriores textos, a cultura e o culto podem e devem coexistir, devendo ser respeitada a fé, a religiosidade, e todos aqueles que mantém viva essa fé e religiosidade: os círios, romeiros e peregrinos. E assim, volto a transcrever as palavras do Presidente do Conselho Permanente da Associação dos Reitores dos Santuários de Portugal: «Entra-se no santuário para agradecer, louvar, suplicar».
Mas esta, claro está, é só a minha opinião.
E apenas dois cenários:
- Cenário 1: - Alguém concorre e ganha a concessão.
- Acreditar que a Câmara Municipal de Sesimbra, enquanto entidade licenciadora, introduzirá as regras que não foram definidas nestas peças que integram o Procedimento relativo ao Concurso Público. E isso passará (digo eu, para que tenha força legal, sabendo-se que o bom-senso não vem na lei) pela criação de um regulamento específico que vise o licenciamento deste “empreendimento turístico de qualidade elevada”, nomeadamente em relação à localização de áreas técnicas, equipamentos e zonas de serviço; condições inerentes ao “uso partilhado” da Ermida e da Casa da Água;…
- E que, uma qualquer força divina, ilumine o futuro Concessionário. Para que tenha “consciência” naquilo que empreender realizar no espaço que lhe irá ser concessionado: cerca de 15.900m2 (área de implantação + área de terreno). Na “medida do possível”, claro.
- E dentro deste cenário, imagine-se que, nos termos definidos pelo Programa de Concurso Público (onde é permitido que, e cito: “agrupamentos de pessoas singulares ou coletivas, qualquer que seja a atividade por elas exercida, sem que entre as mesmas exista qualquer modalidade jurídica de associação” podem candidatar-se ao concurso de concessão), a Confraria do Círio dos Saloios de Nossa Senhora do Cabo Espichel (com o apoio do Patriarcado de Lisboa), concorre e ganha a concessão. Isso é que era! Seria caso para dizer “Deus escreve direito por linhas tortas”: a ala norte das hospedarias voltar à posse de quem a edificou: os círios da margem norte do Tejo (e depois seguir-se-iam as negociações entre o Patriarcado de Lisboa, a Autarquia e o Estado Português, para que as obras e a ocupação servissem os tais “fins turísticos”, desde que integrando a raiz, a origem da sua existência: os círios que a construíram no século XVIII).
- Cenário 2: - Não concorre ninguém para esta concessão.
- Será possível reverter a decisão de transformar o Santuário num hotel, integrando e respeitando todos aqueles que mantêm até hoje viva a tradição, a romaria, a peregrinação.
- Porque o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel sendo, nos termos das normas regulamentares em vigor (e que referi na 2ª parte), REN, Rede Natura 2000 e “zona non aedificandi”, está classificado como equipamento cujo programa (PDM) define a sua “recuperação e aproveitamento do conjunto construído com fins turísticos”.
- Ora “fins turísticos”, não é sinónimo de “um empreendimento turístico de qualidade elevada.” Fins turísticos engloba turismo religioso, turismo da natureza, turismo do património, turismo cultural, turismo de tradições, turismo paleontológico,…
Que a Nossa Senhora do Cabo Espichel ilumine o futuro daquele que é, o seu Santuário.
Nota final: relativamente à placa toponímica Cabo Espichel que ilustra este post, nem uma palavra é dita sobre a mesma. Talvez por ser considerada irrelevante. Quanto a mim, considero que a placa, em si mesma, é de extrema relevância. E por isso, na minha opinião, deverá ser mantida e inalterada.
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