E PELA 10ª VEZ, CABO ESPICHEL OUTRA VEZ - 1ª PARTE

É conhecida a minha posição relativamente à concessão do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel para fins turísticos (implementação de empreendimento turístico) no âmbito do programa REVIVE, pelo que não vou repetir o que tenho vindo a escrever sobre este assunto. Importa no entanto referir (novamente) que não tenho nada, absolutamente nada contra a recuperação e reabilitação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel. Aliás, essa recuperação e reabilitação pecam por tardia porquanto há muito que é urgente efectuar as obras necessárias à preservação daquele que é um imóvel de interesse público desde 1950.

Conforme foi publicitado pela comunicação social, pelo Turismo de Portugal, pelo Governo Português, pela Diocese de Setúbal e pela Câmara Municipal de Sesimbra, no passado dia 18 de Maio realizou-se uma ‘cerimónia’ para abrir o concurso público da concessão do Santuário para fins turísticos. 

No dia 20 de Maio, foram publicados os documentos de referência que instruem o respectivo programa de concessão (portal REVIVE). Caberá agora aos interessados, apresentar as respectivas propostas até ao dia 20.Julho.2021, nos termos definidos no respectivo Programa do Procedimento, Caderno de Encargos e respectivos Anexos (num total de 4). 

No dia 24 de Maio, e depois de ter remetido (a 14 de Maio) carta aberta ao Exmo. Sr. Presidente da República Portuguesa Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa e Exma. Sra. Ministra da Cultura Drª Graça Fonseca, manifestando a minha indignação perante o que se avizinhava concretizar, recebi uma comunicação da Casa Civil da Presidência da República (dando conta das diligências e referindo a abertura de um processo) sendo a imagem que ilustra este post.  

É agora a altura de aprofundar algumas ideias relativamente aos documentos de referência que constam do respectivo programa de concessão. No entanto, peço alguma paciência (este será porventura o post mais longo que publico, dividido em várias partes) porque irei começar por fazer uma pequena (mas importante) cronologia desde a última metade do século passado até aos dias de hoje e, uma pequena abordagem sobre a quantidade de normas regulamentares que incidem sobre o Cabo Espichel e nomeadamente, sobre a área onde se localiza o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel.

Cronologia do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel:

  • 1950
    • Classificação como Imóvel de Interesse Público
  • 1963
    • Classificação como Zona Especial de Protecção;
  • 1964
    • A Fundação Calouste Gulbenkian promove um estudo (efectuado pelos arquitectos Keil do Amaral, Pinto de Freitas e Silva Dias) tendo em vista a recuperação do Santuário, publicando-o em livro;
  • 1964/1975
    • A Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais promove e executa um conjunto de restauros no conjunto arquitectónico do Santuário;
  • 1968
    • É apresentado um projecto de recuperação do conjunto do Santuário, realizado pelos mesmos arquitectos; 
  • 1975
    • As alas norte e sul (hospedarias) do Santuário, são ocupadas;
  • 1980
    • É criada a Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel, integrada na Diocese de Setúbal e composta exclusivamente pela Igreja (ou seja, excluindo os Círios), passando esta Confraria a ser a ‘dona’ do Santuário;
  • 1986
    • É constituído um grupo de trabalho (promovido pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais) tendo em vista a recuperação do Santuário tendo por base o projecto de recuperação apresentado em 1968 (pelos arquitectos Keil do Amaral, Pinto de Freitas e Silva Dias) que definia para a ala norte, uma pousada, lojas de artesanato e auditório e, para a ala sul, espaços destinados ao acolhimento de peregrinos, com habitações permanentes e zonas de serviços;
  • 1995
    • É dada ordem de despejo das alas norte e sul (hospedarias) do Santuário e consequente, são fechados os vãos (construção de paredes nas portas e janelas);
    • Por Decreto-Lei, é autorizado que a Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel doe ao Estado Português a ala norte (hospedarias) do Santuário e com a obrigatoriedade de efectuar e cito: “a recuperação de todo o conjunto para adaptação a uma pousada da Enatur";
  • 1997/2001
    • São efectuadas obras de recuperação e restauro na Igreja pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos;
  • 2000
    • É realizada escritura de doação entre a Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel e o Estado Português da ala norte (hospedarias) e cito: “composto de rés-do-chão e primeiro andar, tendo cada um dos pisos quinze divisões (…) sendo a doação sujeitas às seguintes condições: o imóvel doado tem de ser destinado à construção de uma unidade hoteleira, não podendo ser-lhe dado outra ocupação sem o acordo expresso da entidade dadora; deverão de ser realizadas todas as obras necessárias ao restauro da Ala Sul, efectuando a recuperação e reabilitação da Hospedaria de peregrinos e dos respectivos serviços de acolhimento ao público.
  • 2008
    • A sociedade de investimentos Costatlântica entrega à Câmara Municipal de Sesimbra, 41 mil metros quadrados de terreno na envolvente ao monumento;
    • A família de António Xavier de Lima, entrega à Câmara Municipal de Sesimbra, o edifício da Casa da Água;
    • A Câmara Municipal de Sesimbra realiza um conjunto de melhoramentos (electricidade, regularização do piso do terreiro, a pintura da Ermida da Memória);
  • 2009
    • A Câmara Municipal de Sesimbra instala um posto de transformação de energia na zona da Casa da Água e, iluminação pública no piso do terreiro do Santuário;
  • 2010
    • A Direcção-Geral do Tesouro e Finanças solicita à Câmara Municipal de Sesimbra informação relativamente aos imóveis que pretende permutar pela Ala Norte (hospedarias) do Santuário; 
  • 2013
    • É aprovada a candidatura apresentada pela Câmara Municipal de Sesimbra ao Programa de Desenvolvimento Rural para a requalificação da Casa da Água e horta;
  • 2015
    • A Câmara Municipal de Sesimbra realiza um conjunto de obras de requalificação (cercado da horta e do jardim da Casa da Água, restauro dos muros envolventes e do acesso à Casa da Água, ordenamento do estacionamento e, percurso acessível a pessoas com mobilidade reduzida entre a igreja e a Ermida da Memória;
  • 2016
    • De acordo com a notícia da página da CMSesimbra (Julho.2020) a Autarquia chega a acordo com a Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças tendo em vista a aquisição, pelo valor de 321 mil euros, da Ala Norte das Hospedarias (Nota importante: a Assembleia Municipal de Sesimbra só autorizou a aquisição a 14.Julho.2017);
    • A Secretaria de Estado do Turismo propõe à Câmara Municipal de Sesimbra que o Santuário integre o programa REVIVE; 
  • 2016/2017
    • A Câmara Municipal de Sesimbra recupera a Casa da Água;
  • 2017
    • (14.Julho) - A Assembleia Municipal de Sesimbra, delibera, por unanimidade, sob proposta da Câmara Municipal, autorizar a aquisição da Ala Norte do Cabo Espichel e cito: “pelo valor de 321.000 € (trezentos e vinte e um mil euros), a pronto pagamento, substituindo-se ao Estado nas condições constantes da escritura de doação celebrada em 15/09/2000 e descritas no Decreto n.º 40/95, de 18 de novembro, explicitadas no seguinte considerando: “J. Ao fim de 6 anos de negociação a única proposta que mereceu o assentimento da Direção Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) foi a compra do imóvel pelo Município, com a obrigação de se substituir ao Estado nas condições estabelecidas na doação, nomeadamente a realização das obras de reabilitação da Ala Sul do Santuário e o imóvel adquirido destinar-se à instalação de uma unidade hoteleira, pousada ou similar, não podendo dar-lhe qualquer outra utilização sem o acordo da entidade doadora.” O Deputado Francisco Cordeiro prestou Declaração de Voto. Os Grupos Municipais da CDU, PSD e MSU prestaram Declarações de Voto.” (Não são conhecidos os teores das declarações de voto prestadas. Nem as posições do PS e BE.)
  • 2018
    • Depois de formalizada a aquisição da Ala Norte do Santuário do Cabo Espichel, a Câmara Municipal de Sesimbra submeteu uma candidatura ao PORLisboa2020, para a reabilitação do Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel (grosso modo, as obras do Aqueduto);
    • É aprovada, pelo Patriarcado de Lisboa, a Confraria do Círio dos Saloios de Nossa Senhora do Cabo Espichel, integrando 26 paróquias (círios) da margem norte do Tejo;
    • É assinado protocolo de cooperação entre a Câmara Municipal de Sesimbra e a Confraria de Nossa Senhora do Cabo Espichel, sendo que a Confraria cede ao Município por 40 anos, o direito de superfície da ala sul sendo que, depois de concluídas as obras de reabilitação e cito: “40% do espaço da ala sul seja para uso exclusivo e imediato da Confraria de Nossa Senhora do Cabo.” E acrescenta que, este direito de superfície cedido pela Confraria ao Município visa e cito: “assegurar a viabilidade económica da reabilitação dos edifícios e futura exploração turística e/ou cultural do complexo do Santuário.”
  • 2019/2021
    • A Câmara Municipal de Sesimbra realiza um conjunto de obras no Santuário (estacionamentos, acessos, colocação de árvores, Aqueduto);
  • 2020
    • A Câmara Municipal de Sesimbra delibera por unanimidade, remeter à Assembleia Municipal, para autorização, a concessão de exploração da ala norte do Santuário de Nossa Senhora do Cabo (no âmbito do programa REVIVE);
    • A Assembleia Municipal delibera, também por unanimidade e de acordo com a proposta apresentada pela Câmara Municipal de Sesimbra, autorizar a celebração de contrato de delegação de competências com o Turismo de Portugal, tendo em vista a concessão de exploração da Ala Norte do Santuário da Nossa Senhora do Cabo, no âmbito do programa REVIVE. (A deliberação refere que a CDU e o PSD prestaram Declarações de Voto e que se desconhecem; desconhecem-se também as posições do PS, BE e MSU);
  • 2021
    • É lançado concurso para concessão do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, para fins turísticos, no âmbito do programa REVIVE. 

Resumindo:

Desde 1964 que a ideia é a de transformar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, num empreendimento turístico! E o que mudou? Tudo. Nomeadamente em relação ao ordenamento do território, ao valor patrimonial, aos valores ambientais, às dinâmicas turísticas, religiosas e devocionais. A única ideia que não mudou foi a de transformar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, num empreendimento turístico. Sendo que essa ideia tem vindo a ser mantida pela Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel (que integra a Diocese de Setúbal), dado que após a constituição da mesma e consequentemente a posse de todo o Santuário (em 1980) estabelece (na doação que faz da ala norte das hospedarias ao Estado Português) que “o imóvel doado tem de ser destinado à construção de uma unidade hoteleira.” E o Estado Português quando vende a ala norte à Câmara Municipal de Sesimbra reafirma: “a obrigação de se substituir ao Estado nas condições estabelecidas na doação, nomeadamente a realização das obras de reabilitação da Ala Sul do Santuário e o imóvel adquirido destinar-se à instalação de uma unidade hoteleira, pousada ou similar.” E no protocolo assinado entre a Câmara Municipal de Sesimbra e a Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel, é reforçado que a reabilitação se destina a “futura exploração turística e/ou cultural do complexo do Santuário.”

Mas quanto a mim, que não sei nada de nada sobre protocolos e doações, parece-me que teria sido importante explorar uma outra condição expressa na doação que a Confraria fez ao Estado Português quando refere e cito: “não podendo dar-lhe qualquer outra utilização sem o acordo da entidade doadora.” Quer isto dizer que, com o acordo da Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel poder-se-ia ter chegado a outra solução que não a de transformar o Santuário num empreendimento turístico. E bastaria que fosse a Câmara Municipal de Sesimbra a dinamizar essa alteração. Até pelos milhares de euros que já investiu no Santuário e também em relacção àqueles que se prepara para investir (no mínimo, serão cerca de 500 mil euros) se por acaso aparecer um qualquer interessado na Concessão (dinheiro público e muito dele, fruto dos impostos sesimbrenses). 

E ao invés de aceitar a proposta formalizada pela Secretaria de Estado do Turismo (em 2016), para integrar o Programa REVIVE deveria isso sim e na minha opinião, ter deliberado em 2020 a definição de um novo programa para o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel (com o acordo da Confraria), envolvendo a Confraria do Círio dos Saloios de Nossa Senhora do Cabo Espichel e também, todos aqueles que dedicaram parte da sua vida pessoal, académica e profissional (com dezenas de estudos e teses, nomeadamente em relacção a um hipotético programa de ocupação para todo o espaço do Santuário), potenciando a sua recuperação através de financiamento europeu, nomeadamente (conforme foi recentemente anunciado) através da verba que irá ser disponibilizada pelo PRR para a recuperação de património cultural.

Diz-se que a esperança é a última a morrer. E talvez com essa esperança, não apareça nenhum interessado e esta ideia de transformar o Santuário num hotel seja revertida. E aí sim, poderão ser diligenciadas um conjunto de acções que visem chegar a um acordo com a Confraria da Nossa Senhora do Cabo Espichel e que salvaguardem, em primeiro lugar, a religiosidade do local. Porque (conforme referi AQUI), “entra-se no santuário para agradecer, louvar, suplicar” (palavras do Presidente do Conselho Permanente da Associação dos Reitores dos Santuários de Portugal) e não para pernoitar num qualquer empreendimento turístico. 

Talvez lembrar as razões que levaram, no século XV, o Mosteiro de Santa Maria do Carmo de Lisboa (e também os frades dominicanos), a recusarem a doação (que se propôs fazer o então Comendador de Sesimbra) daquele que era um “local de romagem e grande devoção”. Atente-se na justificação quer do Mosteiro quer dos frades dominicanos para justificar a recusa da doação (cito): “inabitabilidade do lugar.” 

Mas, como diria Saramago, “isso era naquele tempo”. Neste, que é o nosso tempo, tudo está diferente. Até as condições climatéricas que se fazem sentir. E também as condições de habitabilidade que o ser humano exige em pleno século XXI. E claro, não esquecendo as normas e os instrumentos de gestão de território em vigor e que “naquele tempo” não existiam. Aliás, normas e instrumentos de gestão de território que escasseavam até 1974, ano da revolução de Abril (o decreto-lei que introduz regras relativas à politica dos solos data de 1976; e o decreto-lei que veio criar e obrigar à existência de planos de ordenamento do território (PDM, PU e PP) data de 1990).

(continua)


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