SANTUÁRIO DA NOSSA SENHORA DO CABO ESPICHEL – SESIMBRA – 3ªPARTE

(Terceira parte do post SANTUÁRIO DA NOSSA SENHORA DO CABO ESPICHEL - SESIMBRA - 1ª PARTE, iniciando com a última frase da 2ª PARTE): 

Pelo menos nesta época pandémica e de uma crise sem precedentes.

É certo que o planeta continua a girar e que o sol continua a nascer todos os dias. E é preciso optimismo para continuar a prever investimentos num cenário imprevisível, dependente das variantes do vírus, da produção de vacinas, das medidas económicas, dos confinamentos e do encerramento de actividades económicas e turísticas. Mas também é fundamental assegurar a sobrevivência das empresas e dos negócios familiares (dos quais, em muitos casos, dependem todos os elementos do agregado), dos trabalhadores e das famílias. Especialmente agora, em que o rendimento de muitos sofreu reduções e, nalguns casos, é completamente nulo. 

E por isso, voltando ao Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, importa lembrar que a Câmara adquiriu a ala norte das Hospedarias por 321 mil euros (valor mencionado numa notícia de Julho.2020). 321 mil euros que saíram directamente dos cofres municipais, dos impostos pagos pelos sesimbrenses. Ou seja, grosso modo a Câmara irá gastar mais de 800 mil euros no Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel (aquisição e saneamento), para que um promotor privado explore um hotel, pelo valor mensal de 900 euros.

O que terá acontecido para, ao invés de continuar com a política de reabilitação do património (com o exemplo recente da Fortaleza de Santiago), adquirindo, reabilitando e devolvendo à população o seu usufruto, optar por aceitar a integração no programa REVIVE, de toda a ala norte das Hospedarias que tinha acabado de adquirir? 

Porque é que não avançou para um projecto de recuperação, com um programa definido, consensual, que abrangesse toda a área do Santuário e fosse tratada como um todo a intervir? Uma recuperação faseada, definindo prioridades e ouvindo a comunidade sesimbrense, os círios e confrarias existentes, a Associação dos Reitores dos Santuários de Portugal e a diocese de Setúbal. Respeitando a memória colectiva. E envolvendo todos aqueles que estudaram o Cabo Espichel nas mais diferentes áreas.

A verdade é que, quase secretamente e sem grande alarido, os políticos da minha terra, eleitos livre e democraticamente por todos nós, tomaram uma decisão. Mas numa matéria como esta, penso que essa decisão não poderia, nem deveria, ser suficiente para transformar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, num empreendimento turístico.  E não poderia nem deveria ser suficiente porque a decisão tomada decidiu o futuro sobre um património que é de todos e para todos. E apesar de elegermos livre e democraticamente os políticos, para que tomem decisões sobre a gestão do Concelho, os políticos que elegemos têm a obrigação, pelo menos moral, de informar e explicar aos seus eleitores as medidas que pensam tomar sobre assuntos relevantes e de relevância na área do Concelho. 

Já que a força humana terá sido incapaz de impedir esta decisão de transformar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel num hotel, espero que ainda seja possível reverter a decisão (como se lembrarão por exemplo, da Fortaleza de Peniche, que constava também na lista REVIVE - para se transformar num hotel - e que viu revertida a decisão, respeitando a memória daqueles que lutaram, sofreram e morreram pela liberdade, albergando actualmente o Museu Nacional Resistência e Liberdade). 

E acreditando na possibilidade de reversão da decisão, não posso deixar de partilhar um conjunto de ideias (criticáveis, como é óbvio), daquilo que na minha opinião, poderia vir a ser uma proposta de Recuperação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel.

Saliento que a proposta que irei apresentar, coincide com algumas das ideias expressas em livros, publicações, estudos, propostas e teses de acesso público, de muitos daqueles que já dedicaram uma parte da sua vida pessoal, académica e profissional ao estudo do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel.  

Também é importante dizer que esta proposta teria uma execução faseada, e sempre susceptível de poder ser enquadrada em apoios financeiros destinados à reabilitação de património. À autarquia caberia definir as suas próprias prioridades de investimento, naquela que já é sua propriedade: a ala norte das Hospedarias; programando as intervenções a executar em cada orçamento anual, tendo em vista alcançar a totalidade da Recuperação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel.

Assim e em primeiro lugar, a proposta de Recuperação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel deveria ser apresentada como um todo, integrando não só as construções existentes e em ruínas mas também, toda a envolvente não construída (e que integra, entre outros, património geológico e espeleológico). Nessa proposta, porque são vários os intervenientes sobre a posse da propriedade, deveria ser previsto um faseamento de acordo com os consensos que se forem alcançando e com as expectativas geradas. O processo deveria ser participativo, publicitado e divulgado para que todos pudessem contribuir para uma solução o mais consensual possível. 

E porque a cultura e o culto podem e devem coexistir, deveria ser respeitada a fé, a religiosidade, e todos aqueles que mantém viva essa fé e religiosidade: os círios, romeiros e peregrinos. E assim, volto a transcrever as palavras do Presidente do Conselho Permanente da Associação dos Reitores dos Santuários de Portugal: «Entra-se no santuário para agradecer, louvar, suplicar».

A ideia base que proponho para uma Recuperação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, tem três pontos:

  1. Reorganizar todo o espaço envolvente, devolvendo a grandiosidade da entrada no terreiro, e que corresponde ao eixo de ligação dos três elementos compostos pela Casa da Água, Cruzeiro e Igreja;
  2. Definir um percurso que relacione, racionalmente e coerentemente as várias valências construídas e naturais; 
  3. Recuperar todo o património arquitectónico existente, respeitando a imagem e a memória colectiva.

Seguidamente, proponho um programa de ocupação e de utilização das construções existentes no Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel dividido em quatro grupos, onde se desenvolveriam um conjunto de valências:

1º. Grupo: Cultural.

- Implementação de um centro interpretativo, explicando e divulgando:

  • o património geológico e arqueológico, tido como um dos mais importantes geomonumentos de Portugal, identificando a sua estratigrafia e sedimentologia assim como a diversidade dos seus microfósseis; descrevendo os movimentos dos oceanos, da península ibérica e as transformações que ocorreram durante milhões de anos até à imagem que hoje corresponde ao Cabo Espichel;
  • o património espeleológico, identificando as Grutas e a sua grandiosa riqueza; 
  • o património paleontológico, identificando as diferentes pistas de dinossáurios que permitem reconhecer a anatomia e locomoção destes gigantes extintos;  
  • o Parque Natural da Arrábida, identificando a sua área e a sua atractividade especificamente no Cabo Espichel e, a sua a fauna e a flora;
  • o Parque Marinho Luís Saldanha, identificando a sua área e a sua atractividade especificamente no Cabo Espichel, dando a conhecer a fauna marinha, os spot’s de mergulho, o navio afundado, os achados arqueológicos e os investigadores que estudaram os mares do Cabo Espichel (dos quais refiro apenas, a título de exemplo, Bocage e o Rei D. Carlos);
  • a importância da batalha de D. Fuas Roupinho nas águas do Cabo Espichel em 1180, para as conquistas portuguesas além mar; 
  • a construção do Forte do Cabo Espichel;
  • a lenda da Nossa Senhora da Pedra da Mua;
  • a origem e evolução do culto;
  • as loas de louvor dedicadas à Nossa Senhora do Cabo Espichel;
  • a construção das várias valências do Santuário, desde a Ermida da Memória até à construção de uma nova Igreja, descrevendo nomeadamente a sua arquitectura e as influências maneiristas e barrocas;
  • a presença do Rei nas celebrações em honra da Nossa Senhora do Cabo Espichel, com a descrição das riquíssimas ofertas do Rei D. José I e também, da Rainha D. Maria I;
  • a necessidade de uma Casa da Ópera, acolhendo também espectáculos de ópera outros géneros musicais e peças de teatro; revelando a obra musical que foi ali estreada no século XVIII; e identificando o pequeno Paço onde a família real se alojava quando participava nas festividades;
  • as berlindas existentes no Museu Nacional dos Coches, fomentando uma parceria com aquele Museu no sentido de deslocar uma das berlindas numa altura especifica do ano (no mês da realização de uma das comemorações que ocorrem no Santuário);
  • as touradas no espaço da Casa da Água, promovidas pelo Rei D. José I, no espaço da Casa da Água;
  • a construção do Farol do Cabo Espichel. 

2º. Grupo: Etnográfico:

- Dos círios existentes (alguns identificados com inscrições gravadas nos peitos das janelas das hospedarias) em que cada um terá um espaço próprio:

  • divulgando a sua história, os seus testemunhos, o seu património, a sua devoção; 
  • identificando as procissões que realizam, nomeadamente aquela que acontece no próprio Santuário.

3º. Grupo: Religioso.

- Da Igreja, divulgando a ocupação religiosa do Santuário ao longo dos séculos:

  • integrando documentos e património religioso;
  • divulgando as obras de arte sacra existentes, através do seu enquadramento histórico.

4º. Grupo: Actividades e serviços.

  • composto por área de acolhimento ao visitante, romeiro, círio ou peregrino;
  • um posto de turismo; 
  • uma livraria dedicada ao Cabo Espichel; 
  • um espaço de meditação-silêncio-reflexão-estudo;
  • um espaço sensorial, podendo o visitante experienciar a dureza dos dias e das estações do ano no Cabo Espichel;
  • um espaço multimédia e multiusos, destinado a acolher conferências, recitais clássicos, pequenas representações,… ocupando a Casa da Ópera e aquele que foi o antigo Paço Real (e passando a acolher o Festival da Casa da Ópera do Cabo Espichel);
  • um espaço dedicado à observação do céu e das estrelas;
  • uma galeria com mostra de desenhos, pinturas, esculturas, cerâmicas, fotografias, filmes… sobre o Cabo Espichel, divulgando os artistas sesimbrenses; 
  • uma loja de recordações com materiais identificativos do vasto património existente no Cabo Espichel;
  • um restaurante piano-bar.

Paralelamente, desenvolver uma sinalética adequada de acesso ao Santuário e de identificação de cada uma das valências que o compõem. Assim como um projecto luminotécnico-cenográfico que enalteça todo o conjunto. E também uma plataforma digital divulgando eventos, curiosidades, actividades, palestras, concertos, mostras e o conjunto de festividades religiosas que continuam, passados pelo menos, sete séculos, a encher de vida e de fé, aquele que é um dos 161 Santuários de Portugal e que conhecemos como: Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel.

Para que aquela força divina que «nos reduz a uma insignificância terrena e nos amplia a consciência até à fruição do sublime», continue presente nas gerações futuras.



FONTE DAS IMAGENS: retiradas do livro CABO ESPICHEL, EM TERRAS DE UM MUNDO PERDIDO (fotos: 
Carlos Sargedas


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