MULHERES…

Passou um ano sobre o meu post NÃO GOSTO DO DIA DA MULHER.

E de seguida veio o vírus. E depois a pandemia. E o confinamento. E a pressão sobre a Europa no sentido de ajudar financeiramente os estados membros, face à crise económica e social sem precedentes. E a Europa, com avanços e recuos, criou um programa específico para que os estados membros se reergam depois desta onda avassaladora na saúde, na economia e na vida dos europeus. E Portugal foi o primeiro país a entregar um Plano de Recuperação e Resiliência. Plano esse que esteve recentemente em consulta pública e que, definiu três dimensões estruturantes: a Resiliência, a Transição Climática e a Transição Digital. E o que é que isto tem a ver com o “Dia da Mulher”? Não deveria ter nada, rigorosamente nada, a ver com o “Dia da Mulher”. Mas tem. 

Neste Plano de Recuperação e Resiliência surge o assunto “Mulher”. E a “Mulher” continua a ser tratada como uma “coisa”, à qual é necessário atribuir uma verba e fazer uma reforma estrutural. Como se as mulheres fossem uma empresa, ou um negócio, ou uma actividade económica. É tudo tão ridículo. 

Diz o PRR que “as mulheres continuam a sofrer desvantagens estruturais ao longo do seu ciclo de vida, marcadas por estereótipos de género e enormes assimetrias na distribuição do trabalho não pago que as impedem de participar plenamente no mercado de trabalho”.

E continua: “É também sistemática e persistente a desigualdade nos rendimentos, indissociável dos padrões de feminização observados na precariedade e na pobreza, bem como na segregação profissional”, referindo que o Plano “inclui medidas de promoção da igualdade remuneratória e de promoção da representação equilibrada nos cargos de decisão, mas também o combate aos estereótipos que limitam as escolhas formativas de raparigas e mulheres e enformam desigualdades futuras.” 

E faz até um alerta: “A transição digital obriga a uma particular atenção, conhecida a profunda subrepresentação das mulheres na área das tecnologias de informação e comunicação. O combate aos estereótipos no domínio digital está presente desde a escola, até à qualificação da população ativa.”

E depois destas explicações, atribui uma verba de 230 M€ (duzentos e trinta milhões de euros) para que a “Mulher” consiga alcançar o objectivo traçado pelo Plano. E como é que isso vai ser conseguido? Simples: misturando as mulheres com o resto da população laboral. Confuso? Vou tentar explicar:

As empresas que estiverem a contratar novos colaboradores (que podem ser homens ou mulheres) receberão um apoio financeiro directo de cerca de cinco mil euros se o contrato tiver a duração de um ano. Esse valor sofrerá um acréscimo de 25% se os contratados forem jovens até aos 35 anos (que podem ser homens ou mulheres). O apoio financeiro terá ainda um acréscimo (não se sabe de quanto), acumulável com os anteriores, “quando esteja em causa a contratação do sexo sub-representado na profissão” (que também podem ser homens ou mulheres).

Ou seja, as empresas recebem um apoio financeiro se fizerem contratos por um ano (anulando os chamados recibos-verdes). Este apoio é acrescido de 25% se contratarem jovens (estando em causa o combate ao desemprego de jovens recém-formados). E terão ainda um outro acréscimo se o contratado for alguém do sexo subrepresentado. Isto é: imaginem uma fábrica têxtil, em que o sexo forte é feminino. Neste caso, se a empresa contratar alguém do sexo subrepresentado (homem) terá um acréscimo no apoio financeiro definido. Mas, imaginando uma empresa tecnológica, (onde, segundo o PRR, o sexo forte é masculino), se a empresa contratar uma mulher, terá um acréscimo no apoio financeiro definido. Basicamente são estas as medidas definidas para a “Mulher” e que vai sanar os “estereótipos de género e enormes assimetrias.” Ridículo. O que esta verba visa resolver apenas e só, é a precaridade laboral e não as “enormes assimetrias” de género.

Mas o PRR também apresenta uma reforma estrutural: notificar as empresas “com mais de 50 e 250 trabalhadores que apresentem níveis de remuneratórias com diferenças significativas, para apresentarem e implementarem um plano de avaliação das diferenças remuneratórias, até ao 4.º trimestre de 2022”. Por seu turno, o governo compromete-se a elaborar uma Norma relativa à Igualdade Salarial, até ao final de 2024.

Quer isto dizer que a reforma se resume a “um plano de avaliação das diferenças remuneratórias” apresentado pelas empresas, complementado por uma Norma, desenvolvida pelo governo, relativa à Igualdade Salarial. E teremos de aguardar até 2024 para sabermos quais são as consequências definidas pela respectiva Norma e quais serão os resultados práticos, desta reforma, sobre as empresas, os empregos e a igualdade. Da “Mulher” claro.

Pergunto: desde quando é que a mulher é tratada como uma “coisa” que é preciso reformar?, e à qual é necessário atribuir uma verba? 

Que orgulho que as mulheres portuguesas devem sentir ao verem-se tratadas no PRR como uma medida económica de Resiliência. Esta palavra nova, repetida constantemente por todos e em todo o lado. Temos de ser resilientes. E ser resiliente é algo que a “Mulher” é, desde a sua criação. Talvez por isso os homens tenham tanta dificuldade em entender verdadeiramente o que significa ser resiliente. 

É simples. Resiliente é aguentar um choque, não cair, não ficar destruído, e voltar ao que era antes, como se nada tivesse acontecido. E é ouvir relatos de mulheres que foram maltratadas, violentadas, desprezadas, humilhadas, assediadas,… e que sobrevivendo, voltaram às suas vidas, como se nada fosse.

Chegou o momento da mulher deixar de ser resiliente. Chegou o momento de ser “Mulher” em toda a plenitude. Sem mais uma catalogação inserida num Plano de recuperação económica. As mulheres não são meras estatísticas inseridas em frases bonitas. Chega de palavras vazias. Chega de sorrisos e flores. Chega de jantares e jantarinhos. 

As mulheres não são “coisas” às quais os homens não sabem o que fazer. E não é criando ilusões, em que as mulheres fingem acreditar, que a desigualdade de género se combate. A “Mulher” não é uma “coisa” para legislar. A “Mulher” não é uma “coisa” para ser discutida por homens que hipoteticamente definirão o seu futuro. 

A “Mulher” é um ser humano. E quando a espécie humana tiver humanidade, estas tretas que se repetem ano após ano, no “Dia da Mulher”, serão completamente esquecidas e estupidificadas. O ser humano impregnado de humanidade vai olhar para trás e pensar: como é que a humanidade permitiu que o ser humano alimentasse durante séculos uma diferença abismal consubstanciada apenas no género?

Termino com uma frase bonita do Plano de Recuperação e Resiliência, digna do “Dia da Mulher”:

O combate às desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho é não apenas um imperativo de justiça social, mas também um imperativo de desenvolvimento. É entendimento do Governo que uma sociedade que abdica do pleno potencial de metade da sua população está a autolimitar-se no seu desenvolvimento social e económico.

É tão ridículo que chega a ser humilhante. Toda a Europa irá conhecer o PRR de Portugal, nomeadamente os investimentos e reformas que propõe. E a “Mulher” portuguesa é descrita como uma pobre coitada que precisa de ter um plano financeiro, patrocinado pela Europa, para que possa chegar a uma hipotética igualdade com o mundo masculino. Sabendo-se que, depois das regras serem definidas, haverá sempre as excepções à regra. E os contornos legais. E as diferenças legislativas. E as regras de funcionamento das próprias empresas, e… 

Mas esta será a forma de tentar resolver a “coisa” Mulher”. Que continuará sempre a ter o “Dia da Mulher”, para comemorar. E comemorar o quê? Há décadas que o “Dia da Mulher” não comemora o sentido pelo qual foi declarado: lembrar as lutas das mulheres por melhores condições de vida e de trabalho e também, a conquista pelo direito de voto. Lembrar. A palavra é lembrar. Que significa recordar as lutas do passado. 

Mas como é que é passado, se as lutas, em pleno século XXI, continuam quase as mesmas? Talvez seja necessário enviar uma missiva à ONU para rectificar o sentido do “Dia da Mulher”: lembrar à humanidade que as mulheres são seres humanos com os mesmos direitos e deveres dos homens.

NA MINHA PARTICIPAÇÃO NA CONSULTA PÚBLICA SOBRE O PLANO DE RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA, mostrei apenas a minha esperança de que de facto, o PRR consiga suprir esta desigualdade de género. Porque os governos sucessivos do meu país, do nosso país, souberam sempre comemorar o “Dia da Mulher”. Mas isso nunca significou igualar os direitos e deveres entre homens e mulheres. Porque uma coisa é o “Dia da Mulher” outra coisa é ficarmos todos iguais. Como é que podemos ser iguais se somos tão diferentes? 

Curiosamente (ou não) o Tribunal Constitucional nunca se pronunciou sobre estas diferenças entre homens e mulheres, sobre (e transcrevo frases soltas do PRR) as desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho, as práticas discriminatórias, os estereótipos de género que limitam as opções formativas e profissionais de mulheres e raparigas, a violência contra as mulheres, as desvantagens estruturais ao longo do seu ciclo de vida, a desigualdade nos rendimentos, os padrões de feminização observados na precariedade e na pobreza, a segregação profissional,… declarando-as práticas inconstitucionais porquanto desrespeitam:

O Princípio da igualdade:

Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

Os Direitos dos Trabalhadores:

Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.

E aos sucessivos Presidentes da República, bastava-lhes cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente as tarefas identificadas como fundamentais do Estado (e das quais apenas transcrevo duas):

Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses."

"Promover a igualdade entre homens e mulheres.”

Não vejo em nenhum dos artigos que compõem a Constituição da República Portuguesa, uma excepção, excluindo dos princípios e dos deveres do estado, as “Mulheres”. Por isso, quando a Constituição da República Portuguesa for efectivamente cumprida, estarão resolvidas todas as desigualdades entre os homens e mulheres portugueses.

Mas esta não é apenas uma realidade portuguesa. Não. O grande continente europeu, rico em valores e ideais sociais, criou, através da Comissão Europeia, em Março de 2020, a Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025. Parece que as mulheres europeias também são “coisas” que precisam de uma estratégia. E se mudarmos de continente, uma grande maioria de mulheres nem sequer uma “coisa” são. Não têm valor atribuído e estão sujeitas, não só às alterações climáticas e à transição digital mas também, à resiliência eterna. Meu Deus. É tudo tão ridículo.

Ouvi alguém dizer que as mulheres são sempre desconsideradas e discriminadas. Especialmente se não forem brancas e europeias. E a culpa é de quem, pergunto eu? Das mulheres. Da resiliência das mulheres. E da impunidade dos homens. E da incapacidade dos homens punirem outros homens.  

Acredito que existe uma nova geração de mulheres que não vai ser apenas resiliente. A nova geração de mulheres é sonhadora, é ambiciosa e sente-se igual aos homens e com os mesmos direitos. E essa é, porventura, a maior conquista das mulheres. Porque já nem o céu é o limite! 

E será esta nova geração de mulheres que irá acabar com este festejo patético, medíocre e humilhante.


FONTE DA IMAGEM: cultura.culturamix.com


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