NÃO GOSTO DO DIA DA MULHER
O “Dia da Mulher” é todos os dias e não num dia único. O “Dia da Mulher” é um dia igualzinho a todos os outros. Excepto nos sorrisos, beijinhos e flores que não existem nos outros dias de calendário. É um dia sinistro, onde as mulheres recebem uma flor do patrão que, muitos dias do ano, nem sequer os bons-dias lhes dá.
O “Dia da Mulher” é só mais um dia. E há “Dias” para tudo e mais alguma coisa: dias que lembram uma profissão, uma acção, uma situação, uma minoria. E as mulheres não são uma profissão, nem uma acção, nem uma situação, nem uma minoria. As mulheres são a maioria. E não precisam de ter um dia. Precisam de todos os dias.
É tão ridículo o “Dia da Mulher”. Desprovido de sentido, transformou-se numa campanha política, feminista e consumista. O que importa é que as mulheres naquele “Dia” tenham a ilusão de que são especiais. E é ver palavras doces, paternais e solidárias nos discursos aqui e ali de políticos nacionais. E é ver os movimentos feministas e os grupos de mulheres (com mais ou menos ligações partidárias) a reivindicarem em marchas para aqui e para ali, com cartazes tipo manifestação climática. E é ver as lojas, restaurantes e hotéis, apresentarem um dia maravilhoso, como se fosse o último dia da vida das mulheres.
As mulheres são-no todos os dias do ano. E se têm um “Dia” não o banalizemos. Lembremo-nos todos do significado do “Dia da Mulher”. Como conquista de direitos, de igualdade, de respeito. E não como um dia em que há flores e jantares e presentes e brindes e sorrisos e cumprimentos.
Para as mulheres de uma maneira geral, o dia é igual a outro qualquer. Dependendo do seu universo e do meio em que se inserem como é óbvio. Por exemplo, uma doméstica num Portugal desconhecido. Acordará exactamente à mesma hora, dá o pequeno-almoço aos filhos, faz as camas, trata da roupa, faz o almoço, lava a loiça, passa a ferro, faz o jantar e vê, na televisão, o nosso Presidente Marcelo a falar sobre as mulheres. Que “sendo boas, são as melhores das melhores”. E sente-se orgulhosamente, mulher.
E as mulheres que têm um trabalho, vão trabalhar. Obviamente. Onde é que já se viu o patrão dar o dia? Não! E depois? Quem é que ficava lá a trabalhar? Se pensarmos no universo laboral, quantos serviços e comércios fechariam para que as mulheres celebrassem o seu “Dia”? Nunca na vida essa ideia avançaria com um universo masculino que conseguiu manipular o verdadeiro “Dia da Mulher”. Manipular se calhar é uma palavra muito forte mas, tudo se resume a uma flor oferecida com um sorriso nos lábios e o desejo de um bom “Dia da Mulher”. E toca a trabalhar! Porque o mundo não pára e tempo é dinheiro!
Desde o início do mundo civilizado que as mulheres foram subjugadas em todas as suas possibilidades. Foram reduzidas a escravas, objectos sexuais e sociais. Com o passar dos séculos, poucas foram as rainhas por descendência directa (só o filho homem herdava o trono). E as mulheres das casas consideradas nobres, eram educadas para, em primeiro lugar, serem boas parideiras. De machos obviamente. Depois, veio a república. E a mulher está em casa: é uma boa dona de casa, que cuida dos filhos e serve o marido. Não tem trabalho, não tem opinião, não tem pensamento. Precisa de autorização para tudo e mais alguma coisa. De quem? Do marido. É ele que gere a mulher como sua propriedade. E apenas uma pequeníssima minoria de mulheres rebeldes, oriundas de famílias abastadas, conseguiram vingar num mundo completamente masculino. E depois veio o 25 de Abril. E as mulheres libertaram-se… Mas como diz o ditado “à vontade não é à vontadinha”. E chegámos aos dias de hoje. E onde é que andam as mulheres? Andam por aí, aparentemente “à vontade”. E desde que não se fale do assédio (e as mulheres que nunca o sentiram serão com certeza e apenas neste caso, uma ínfima minoria) muitas acreditam que já andam por aí, “à vontadinha”. Mas basta olhar para a diferença salarial entre homens e mulheres. E basta olhar para a percentagem de mulheres que ocupam cargos de chefia. E basta olhar para, por exemplo, os lugares femininos na assembleia da república. E não é só aqui, no nosso rectângulo à beira mar plantado. É de uma maneira geral em todos os países chamados de “civilizados”. Porque nos países que não estão dentro deste grupo, as mulheres continuam a não existir. São meros objectos que servem os desejos do homem. Bons e maus.
Ou seja, as mulheres vivem num mundo de ilusão criado pelo homem, em que aparentemente têm vontades e desejos mas, com as devidas quotas e percentagens. E uma vez por ano, apenas e só uma vez por ano, para apaziguar os ânimos, existe um “Dia” dedicado à mulher.
Já pensaram se as mulheres no seu “Dia” se mobilizassem como os estivadores? Como os motoristas de transportes de materiais perigosos? Como os mestres das embarcações dos barcos de transportes do Tejo? Nenhuma mulher iria trabalhar. E as mulheres como o exemplo que dei, de um Portugal desconhecido, nem sequer saíam da cama. Uma espécie de greve geral de mulheres.
Mas não, nada disso. O “Dia da Mulher” é só mais um dia. Não vamos complicar. As mulheres aguentam os restantes 364 dias do ano em que muitas são desrespeitadas, injustiçadas, assediadas, vítimas de violência. É como se o dia 8 de Março funcionasse como uma purga. O que está para trás ficou para trás, e começa um novo capítulo.
Não gosto do “Dia da Mulher”. Porque o tempo o esvaziou das suas origens e significado, adulterando todo o seu simbolismo.
O “Dia Internacional da Mulher” foi designado pela ONU, em 1975, tendo como objectivo lembrar as lutas das mulheres por melhores condições de vida e de trabalho. E claro, pelo direito de voto.
E as lutas das mulheres que suportam a designação do “Dia” são as manifestações russas, em 1917 e, as americanas, em 1857. As primeiras, reclamando melhores condições de vida. As segundas reclamando direitos para as trabalhadoras. Nos dois casos, a repressão foi violenta e brutal, tendo no caso americano culminado com um incêndio criminoso onde mais de uma centena de manifestantes femininas perdeu a vida.
Eu, pessoalmente, prefiro lembrar duas lutas de mulheres portuguesas:
A primeira em 1846. Um grupo de mulheres do campo manifestou-se contra o conjunto de impostos criados pelo governo presidido por Costa Cabral. Impostos esses que incidiam sobre as propriedades agrícolas (contribuição predial) e sobre os funerais (que teriam de ser pagos e realizados para os cemitérios). Numa população pobre, sem dinheiro para comer e muito menos para pagar impostos, foram as mulheres que encabeçaram a revolta popular. Na frente, uma mulher vestida de vermelho foi identificada como sendo Maria Angelina, da Fonte da Arcada. Para a história ficou a Revolução da Maria da Fonte que conduziu à queda do governo de Costa Cabral e à suspensão das medidas.
A segunda em 1954. Catorze ceifeiras reclamaram um aumento salarial de dois escudos. A encabeçar a reivindicação estava Catarina Eufémia, que gritava que só queriam “trabalho e pão”. Para acabar com a reivindicação, o tenente da guarda atingiu-a com três tiros à queima-roupa, matando-a. O caso foi mais ou menos abafado, o tenente da guarda foi transferido e Catarina Eufémia foi enterrada às escondidas numa terra perto de Beja, depois das autoridades terem reprimido violentamente a população e os familiares que desejariam acompanhar o funeral. Só 20 anos depois, os restos mortais de Catarina Eufémia foram transladados para a sua terra natal: Baleizão.
Que se lembrem todas as mulheres que lutaram pelos seus direitos. Pelos direitos de todas as mulheres. Que neste “Dia” as mulheres se sintam grandes, e demonstrem a sua grandeza todos os dias do ano. Exigindo educação, respeito, consideração e igualdade. E que se lembrem ainda todas as mulheres do resto do mundo, que por terem nascido noutro continente, noutro país, noutra região, continuam a sofrer. A serem tratadas pior do que um animal. Sem direitos. Sem dignidade. Sem humanidade.
Não gosto do “Dia da Mulher”. Porque o tempo o tornou banal, medíocre, vazio.
Desejo um mundo sem “Dia da Mulher”. Onde o ser humano esteja completo, sem sexo que declare um “Dia”. Não imagino um mundo com o “Dia dos Homens”. É por essa igualdade que as mulheres devem reivindicar. Todos os dias do ano.
Que se declare o “Dia dos Seres Humanos”, o “Dia da Humanidade”. Sem diferença de sexos. Sem quotas e percentagens. Simplesmente igual. A verdade é que, infelizmente, o caminho será looooongo e distante, até que a Humanidade se assuma única e igual.
Não gosto do “Dia da Mulher”. Porque em pleno século XXI é apenas mais um dia de hipotética alegria e festividade, esquecendo o passado e o futuro.
Não gosto do “Dia da Mulher”. Porque a luta por melhores condições de vida e de trabalho não é matéria exclusiva da mulher. A luta por melhores condições de vida e de trabalho não tem sexo. Termina, quando homens e mulheres lutarem pelo mesmo. Não é uma luta de mulheres. É uma luta da humanidade.
Não gosto do “Dia da Mulher”.
FONTE DA IMAGEM: spencertunick.com
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