A «LEI DOS SOLOS» - 2ª. PARTE
E qual é o «solo rústico» que pode ser reclassificado como «solo urbano»?
- Todas as áreas que não estejam abrangidas por regime de proteção e que integram Áreas Classificadas como por exemplo, Rede Natura 2000 - (alínea a) do número 2);
- 3 das 19 áreas classificadas como REN (Reserva Ecológica Nacional) nos termos do respectivo regime jurídico em vigor - (alínea a) do número 3) - que correspondem a:
- Áreas estratégicas de infiltração e de protecção e recarga de aquíferos (alínea d) do número 3 do artigo 4º do regime jurídico da REN);
- Áreas de elevado risco de erosão hídrica do solo (alínea d) do número 4 do artigo 4º do regime jurídico da REN);
- Áreas de instabilidade de vertentes (alínea e) do número 4 do artigo 4º do regime jurídico da REN);
- Todas as terras classificadas como classe A2, A3, A4, AO ou solos classificados como classe C, subclasse Ch, classe D, classe E, que integram a Reserva Agrícola Nacional;
- Todo o restante «solo rústico» que define a mancha florestal do território nacional.
Desta (grave) lista, considero ser de extrema gravidade que nas 3 áreas de REN (que acima identifiquei) seja permitido reclassificar, ou melhor, desanexar as mesmas quando são fundamentais e deviam ser preservadas. Terá sido um qualquer lapso?
Direi que é possível reclassificar como «solo urbano» quase que a totalidade do território nacional que é «solo rústico» (com as proibições que acima descrevi). Sendo que (dados do INE e DGT), 77% do país é floresta, matos e agricultura. Porque, diz o preâmbulo desta alteração à «Lei dos Solos»: “o aumento do número de solos destinados à construção de habitação, incluindo habitação pública e acessível é fundamental para assegurar o cumprimento dos objetivos do Programa Construir Portugal”.
De acordo com os Censos de 2021, existem actualmente 1,4 casas por agregado familiar (sendo que o agregado familiar corresponde a uma média de 2,4 pessoas). Dizem os mesmos Censos de 2021 que existe um excedente superior a 1 milhão e 800 mil alojamentos, face aos agregados familiares existentes. O problema não será a falta de casas nem a falta de “solos destinados à construção de habitação, incluindo habitação pública e acessível”. O problema será o custo das casas face à fraca capacidade financeira dos agregados familiares portugueses, perante a atratividade do destino ‘Portugal’ e a consequente especulação imobiliária. E essa é uma matéria que não se resolve, obviamente, com esta alteração à «Lei dos Solos». Até porque, a consequência directa desta alteração, será a subida do preço de venda de prédios rústicos. A especulação já começou: quem era detentor de um prédio rústico, sem qualquer tipo de possibilidade construtiva, vê agora uma possibilidade real de vir a efectivar um encaixe financeiro considerável, mesmo que a construção seja destinada a “habitação pública, ou a habitação de valor moderado”. Deixou de ser detentor de um terreno que valia zero no mercado imobiliário, e passou a ser detentor de um terreno que valerá uns milhões nesse mesmo mercado imobiliário.
E para tal só terá de cumprir os seguintes requisitos cumulativamente (sendo que esta alteração à «Lei dos Solos» não define quem inicia o procedimento para reclassificar «solo rústico» em «solo urbano»: são os Municípios que determinam a reclassificação mas, por sua única iniciativa ou perante um requerimento de proprietários/promotores?):
- Assegurar que a nova área de «solo rústico» a reclassificar como «solo urbano» consolida zonas de vazio existente (dentro e/ou adjacentes) em áreas urbanas consolidadas, formando um contínuo harmonioso e coerente;
- Garantir que um mínimo de 70% da área total de construção a consolidar, seja destinada a habitação pública ou a “habitação de valor moderado” (um novo conceito, que tem por base o valor da “mediana de preço de venda por m2 de habitação” actualmente praticado no país e/ou nos diferentes concelhos);
- Delimitar e desenvolver uma unidade de execução (nos termos do artigo 148º da «Lei dos Solos»);
- Garantir (construindo ou referindo que já existem) as “infraestruturas gerais e locais, assim como os equipamentos de utilização coletiva necessários e os espaços verdes adequados para cobrir as necessidades decorrentes” do novo uso habitacional;
- Justificar que a reclassificação de «solo rústico» como «solo urbano» é compatível com “a estratégia local de habitação, carta municipal de habitação ou bolsa de habitação” (sendo que nos termos da Lei de Bases da Habitação, é a Carta Municipal de Habitação que define “as necessidades de solo urbanizado” (artigo 22º); ou seja, é a carta Municipal de Habitação que, perante “o diagnóstico das carências de habitação na área do município”, identifica os locais adequados para novas urbanizações (nomeadamente, em «solo rústico» a reclassificar como «solo urbano»).
Depois de cumpridos estes requisitos (e fundamentados em pareceres técnicos dos “serviços municipais ou de outra entidade contratada com competência técnica para o efeito”) deverão “ser planeadas e executadas as medidas necessárias à salvaguarda da preservação dos valores e funções naturais fundamentais, bem como as medidas necessárias à prevenção e mitigação de riscos para pessoas e bens.”
Significa que, alguém (que não é especificado) terá de planear (para posterior execução/implementação) as medidas necessárias “à salvaguarda da preservação dos valores e funções naturais fundamentais” porque, eventualmente, a nova urbanização destinada a habitação pública ou a “habitação de valor moderado”, pode coincidir com zonas integradas em Áreas Classificadas, áreas de REN e de RAN, e que são reclassificadas como «solo urbano».
E terão ainda de ser planeadas (para posterior execução/implementação) “as medidas necessárias à prevenção e mitigação de riscos para pessoas e bens” porque a nova urbanização destinada a habitação pública ou a “habitação de valor moderado”, pode coincidir com áreas de elevado risco de erosão hídrica do solo ou com áreas de instabilidade de vertentes.
Direi que este planeamento é o mais importante. Será este documento (se acaso existirem zonas integradas em Áreas Classificadas, áreas de REN e de RAN, a ser reclassificadas como «solo urbano») que definirá toda a nova solução urbana a realizar. Ninguém quererá construir o que quer que seja, em áreas de elevado risco de erosão ou de instabilidade de vertentes (digo eu).
Cumpridas estas etapas, a proposta de reclassificação de «solo rústico» para «solo urbano» é sujeita a consulta pública (no mínimo, 20 dias), sendo (depois de analisadas as participações resultante dessa consulta pública e elaborado o respectivo relatório) submetida a deliberação da respectiva Assembleia Municipal e posteriormente, publicada em Diário da República.
A deliberação que a Assembleia Municipal vier a tomar conterá obrigatoriamente:
- Os fundamentos dos pareceres técnicos dos “serviços municipais ou de outra entidade contratada com competência técnica para o efeito” que suportam a reclassificação proposta;
- As peças escritas e desenhadas que incluam “a delimitação da área abrangida, a área total de construção, o número máximo de fogos e a programação temporal das obras de urbanização e edificação” (num máximo de 5 anos).
E também, para que seja possível efectuar o registo predial (com inscrição gratuita promovida pela Câmara Municipal):
- A obrigação de afetação de um mínimo de 70% da área total de construção (acima do solo) para habitação pública e/ou para “habitação de valor moderado”.
Depois de publicado em Diário de República, a nova urbanização destinada a habitação pública, terá de estar concluída em 5 anos. Este prazo pode ser prorrogado uma única vez, (com um novo período de 2 anos e meio) “por razões excecionais e desde que as operações urbanísticas já tenham sido iniciadas”. Se, no limite, ao fim de 7 anos e meio (admitindo que o prazo de 5 anos é prorrogado) a nova urbanização não estiver totalmente concluída, caduca automaticamente a reclassificação do «solo rústico» como «solo urbano», total ou parcialmente. Mas claro, “sem prejuízo das faculdades urbanísticas adquiridas mediante título urbanístico”. Melhor explicando: sem por em causa os direitos construtivos adquiridos pelos particulares/promotores através do alvará emitido pela Câmara Municipal.
Sinceramente, não sei se esta nova alteração à «Lei dos Solos» resultará de facto na consolidação de habitação pública. O que me parece é que se trata apenas e só de abrir a possibilidade construtiva em terrenos que nunca a teriam, ou que nunca a deveriam vir a ter. Ou, podendo vir a ter, surgiriam depois de uma análise cuidada e rigorosa, sustentada e justificada e não, como “regime especial” que surge face ao atraso do PRR e à incapacidade de gastar dinheiro europeu nos prazos estipulados.
O resultado imediato será, uma vez mais, a especulação. Nomeadamente sobre o valor dos actuais «solos rústicos». E depois, a especulação sobre a habitação que vier a ser consolidada: 30% será colocada no mercado, a preços de mercado. E será a mediana do valor desse mercado que definirá o custo das habitações de valor moderado e que, em alguns casos (nomeadamente nas grandes cidades e nos concelhos de maior atratividade), continuarão inacessíveis para a esmagadora maioria dos portugueses.
O que esta alteração trás consigo é mais receita para as Autarquias: mais receita no IMT, mais receita em licenciamentos, mais receita no IMI. Direi que se trata de uma maneira perversa de aumentar o financiamento das Autarquias, não através do orçamento de Estado mas sim, através de uma alteração legislativa que, nas palavras do Presidente da República, é “um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”.
O PRR termina em 2026. Admitindo que se iniciam a partir do próximo dia 29 de Janeiro, reclassificações de «solo rústico» para «solo urbano», direi que as Assembleias Municipais ficam no olho do furacão. Por dois motivos principais:
- “48,5% das denúncias, queixas ou exposições efectuadas ao MENAC” (Mecanismo Nacional Anticorrução) são de autarquias. Ou seja, quase 50% das denúncias sobre corrupção são relativamente às Autarquias. A Ministra da Justiça (a 9 de Dezembro de 2024) diz admitir criar um núcleo de inspecção “dedicado exclusivamente às Autarquias” ressalvando que “esta medida não é contra os autarcas, nem contra os funcionários autárquicos, nem contra os munícipes. Pelo Contrário, é uma medida que protege os autarcas empenhados na causa pública, que defende os funcionários autárquicos íntegros e que beneficia todos os munícipes.”
- A ANAM (Associação Nacional das Assembleias Municipais) alertou, perante esta alteração à «Lei dos Solos», a necessidade de “capacitação desses órgãos municipais” como medida absolutamente fundamental e “necessária para acompanhar este aumento de responsabilidades”. Até porque, não quererão ser responsabilizados de atribuírem direitos construtivos a proprietários/promotores que à boleia do “regime especial” vêem a valorização dos seus terrenos rústicos disparar exponencialmente.
O que é preocupante será o facto da Ministra do Ambiente e Energia referir (a 9 de Janeiro deste ano) que não percebe "a questão da especulação imobiliária, porque começa no princípio de achar que isto fica delegado muito nos municípios e parte do princípio de que os técnicos dos municípios e as assembleias municipais são mais suscetíveis à corrupção do que o central». E as palavras do Ministro Adjunto e da Coesão Territorial (a 12 de Janeiro deste ano) achar "inaceitável passar um atestado de corrupção aos autarcas de Portugal”. Será que não viram, ouviram, leram, as declarações da Ministra da Justiça e o comunicado da ANAM (e que acima referi)?
Não se trata de confirmar ou não, a corrupção das Autarquias. Trata-se isso sim, de ajudar as Autarquias a não sofrerem essa denominação se, devidamente capacitados e fundamentados, vierem a cumprir a nova tarefa que lhes é atribuída de forma exclusiva (ficam de fora desta reclassificação de «solo rústico» para «solo urbano», entidades como as CCDR), de aplicar o definido pela nova «Lei dos Solos».
Comentários
Enviar um comentário