A «LEI DOS SOLOS» - 1ª. PARTE
É já no próximo dia 29 de Janeiro que as alterações efectuadas ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (comummente denominado «Lei dos Solos») entram em vigor. Nomeadamente a regra que permite reclassificar «solo rústico» em «solo urbano».
Mas antes de tecer alguns considerandos sobre o assunto, importa referir que existe uma alteração a esta «Lei dos Solos» que já está em vigor desde o dia 31 de Dezembro de 2024. Ou seja, existe uma alteração que já vigora há 16 dias:
Em todos os planos municipais (e intermunicipais) que não tenham incluído as regras de classificação e qualificação previstas na «Lei dos Solos» até ao passado dia 31 de Dezembro de 2024 (prazo que tem vindo a ser sucessivamente prorrogado desde a publicação da «Lei dos Solos» em 2015), ficam suspensas automaticamente “as normas relativas às áreas urbanizáveis ou de urbanização programada, como tal classificadas nos planos territoriais em vigor, não podendo, nessa área e enquanto durar a suspensão, haver lugar à prática de quaisquer atos ou operações que impliquem a ocupação, uso e transformação do solo” (artigo 199º., número 3).
Ou seja, está suspenso, proibido, qualquer tipo de licenciamento ou autorização em áreas que ainda estejam classificadas (nos planos em vigor) como “urbanizáveis ou de urbanização programada” (e que serão, naturalmente, «solo urbano»).
Existem apenas duas excepções. A primeira (artigo 199º., número 4) é relativa às áreas que:
- Entretanto tenham adquirido características de solo urbano (ou seja, que tenham as obras de urbanização concluídas decorrentes de um alvará de loteamento);
- Estejam abrangidas por Planos de Pormenor, por Contratos de Urbanização ou por actos administrativos de controlo prévio, nos quais esteja definido o termo do prazo para a execução das obras de urbanização (ou seja, que estejam definidas temporalmente a realização de obras de urbanização num Plano de Pormenor, num Contrato de Urbanização ou numa deliberação camarária).
Mas, para que esta excepção seja eficaz, “depende de declaração emitida pela câmara municipal com a identificação e delimitação das áreas objeto da exceção” devendo a mesma ser enviada à CCDR “territorialmente competente, acompanhada da respetiva fundamentação” e estando sujeita a “publicação, publicitação e depósito nos termos previstos no presente decreto-lei para as alterações aos planos territoriais” (artigo 199º., número 5).
A segunda excepção é relativa à realização de operações urbanísticas (artigo 199º., número 6) “em áreas urbanizáveis ou de urbanização programada cuja finalidade seja habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares, nos termos do artigo 72.º-B” (que é o artigo que permite reclassificar solo como urbano e que irei de seguida abordar).
O último ponto deste artigo 199º. (número 7) refere que a CCDR “identifica as disposições objeto de suspensão, ouvido o município, podendo este, no prazo de 30 dias, demonstrar que o incumprimento decorreu de motivo que não lhe é imputável”. Significa que, cabe à CCDR identificar quais são as regras dos planos municipais (e intermunicipais) que ficam suspensas. E se os Municípios conseguirem demonstrar que, ao fim de 10 anos da «Lei dos Solos» estar em vigor, ainda não conseguiram incluir as regras de classificação e qualificação previstas naquele diploma, por motivos sobre os quais são completamente alheios, aparentemente, a suspensão não ocorrerá.
A verdade é que há 16 dias que estão suspensas, proibidas, quaisquer tipo de licenciamentos ou autorizações em áreas que ainda estejam classificadas (nos planos em vigor) como “urbanizáveis ou de urbanização programada”. E assim continuarão proibidas até que:
- As Autarquias emitam a declaração com a identificação e delimitação das áreas objeto da exceção, e a remetam à CCDR para posterior publicação e publicitação.
- As CCDR identifiquem quais são as regras dos planos municipais (e intermunicipais) que ficam suspensas (ou não, dependendo essa suspensão das razões que os Municípios vierem a invocar e que consigam sustentar que o incumprimento se deve a factos alheios aos próprios Municípios).
Parece-me que esta alteração, em vigor desde o dia 31 de Dezembro de 2024, é para já a mais significativa porquanto é imediata. Ou seja, interfere directamente na gestão dos territórios, porquanto nas “áreas urbanizáveis ou de urbanização programada” ficam proibidos quaisquer tipos de operações urbanísticas (salvo as excepções que acima referi e desde que cumpridas as medidas que permitem essas mesmas excepções) até que os Planos Municipais cumpram a «Lei dos Solos».
O que (digo eu) será um contrassenso face àquela que é uma alteração à «Lei dos Solos» que possibilita “a título excecional, a criação de áreas de construção em solos compatíveis com área urbana já existente” (frase do preâmbulo da alteração agora introduzida). Ou seja, por um lado e “a título excepcional”, transformam-se «solos rústicos» em «solos urbanos». Por outro lado, naquelas que são hoje “áreas urbanizáveis ou de urbanização programada” (e por isso, devidamente estudados e identificados nos planos municipais como solos “compatíveis com área urbana já existente”) ficam suspensos os licenciamentos ou autorizações.
Apenas por um motivo: para que as expectativas criadas nessas classificações como “áreas urbanizáveis ou de urbanização programada” não sejam defraudadas. Melhor explicando: para que quem seja titular de um terreno classificado como “urbanizável” mas que, ainda não o tenha urbanizado, não perca a expectativa construtiva que lhe está atribuída. Melhor dizendo: para que um terreno classificado como “urbanizável” passe a ser «solo urbano» nos termos da «Lei dos Solos» mantendo a capacidade construtiva que já detinha, sem qualquer tipo de ‘beliscar’ que obrigue a uma qualquer cedência não prevista ou a alguma outra medida que retire valor à expectativa criada/adquirida.
Só assim se justifica uma das excepções previstas no artigo 199º que acima referi:
- Nas “áreas urbanizáveis ou de urbanização programada” podem vir a existir obras de urbanização, licenciamentos e autorizações, desde que as mesmas se destinem a habitação e usos complementares nos termos do artigo 72º. B.
Ou seja, naquelas que são áreas há muito identificadas como “compatíveis com área urbana já existente”, "pelo menos 700/1000 da área total de construção acima do solo deve destinar-se a “habitação pública, ou a habitação de valor moderado”. Ou seja, o que quer que venha a desencadear um processo de reclassificação para solo urbano de “áreas urbanizáveis” (será por iniciativa própria dos Municípios ou será também, a pedido de proprietários e/ou promotores?) irá introduzir uma nova regra obrigatória que ‘beliscará’ os direitos construtivos, que estando consignados nos planos municipais se vêem defraudados por uma suspensão e alteração.
Direi que a ideia subjacente a esta alteração à «Lei dos Solos» é a de proteger as “áreas urbanizáveis e de urbanização programada”, numa aparente medida de suspensão preventiva que resultará apenas na salvaguarda dos parâmetros urbanos definidos e que, no âmbito dos planos municipais (aquando da sua adequação à «Lei dos Solos») serão reclassificados como «solo urbano» (sendo que muita dessas reclassificações já estão propostas nos planos municipais que se encontram a decorrer, nomeadamente, nos processos de revisão).
Direi até que não irão existir “áreas urbanizáveis e de urbanização programada” a beneficiar(?) deste “regime especial”. Seria a primeira vez que uma expectativa criada por um plano de ordenamento do território sofreria alterações sem contrapartidas para o ‘lesado’.
E até avanço com uma sugestão: Não teria sido mais eficaz se, “a título excepcional”, em todas as “áreas urbanizáveis ou de urbanização programada” definidas nos planos municipais e intermunicipais (e que ainda não tivessem sido sujeitas a qualquer tipo de operação urbanística), se aplicassem apenas duas regras:
- A possibilidade construtiva definida nos planos municipais (e intermunicipais) será exclusivamente habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares;
- Pelo menos 700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, ou a habitação de valor moderado.
Parece-me que seria uma medida mais eficaz, coerente e de fácil aplicação e apreensão. Até porque, uma “área urbanizáveis ou de urbanização programada” foi definida por uma equipa pluridisciplinar (baseada em estudos e análises devidamente fundamentados), analisada por um conjunto de técnicos de diferentes entidades (das mais variadas matérias), acompanhada pelas CCDR competentes, sujeita a discussão e concertação entre os Municípios e as diferentes entidades envolvidas, submetida a discussão pública, aprovada pelas Assembleias Municipais e posteriormente, rectificada e publicada em Diário da República. Todo este trabalho (que demora anos!), é aparentemente desconsiderado, ao suspender nas “áreas urbanizáveis ou de urbanização programada” a possibilidade construtiva.
Acresce que, (dados do INE e DGT) existem no território nacional cerca de 4 milhões e 500 mil hectares classificados como “áreas urbanas, urbanizáveis e de urbanização programada” (que será «solo urbano»). Cerca de metade desta área, ainda não está construída. Ou seja, cerca de metade desta área não tem obras de urbanização, nem edifícios, nem habitações, nem nada. Hipoteticamente, será até possível afirmar que, a capacidade construtiva prevista actualmente nos planos de ordenamento permitirá duplicar a oferta habitacional existente.
Mas não é com estes dados que a alteração à «Lei dos Solos» se apresenta: a “título excepcional”, suspende a construção em cerca de metade das áreas que são, naturalmente «solo urbano». E paralelamente, abre a possibilidade de construção em áreas que são, naturalmente, «solo rústico».
Porque “a maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis, promovendo, assim, uma maior equidade social e permitindo que as famílias portuguesas tenham acesso a habitação digna” (frase constante no preâmbulo desta alteração à «Lei dos Solos»). Não definindo porém, limites para essa reclassificação de «solo rústico» em «solo urbano». Qualquer «solo rústico» poderá ser reclassificado como «solo urbano». E esta é uma possibilidade assustadora e preocupante.
E o que diz então o artigo 72º. B? Começo pelas proibições. Ou seja, começo pelo «solo rústico» que não pode ser reclassificado como «solo urbano»:
- Todas as áreas abrangidas por regime de proteção e integradas em Áreas Classificadas, como por exemplo, Rede Natura 2000 - (alínea a) do número 2);
- Todas as áreas adjacentes a estabelecimentos onde estejam definidas (ou que venham a ser definidas) “zonas de perigosidade abrangidas pelo regime de prevenção de acidentes graves” - (alínea b) do número 2);
- Toda a costa portuguesa abrangida por programas especiais da orla costeira, assim como “albufeiras de águas públicas e estuários” - (alínea c) do número 2);
- Todas as áreas identificadas nos Planos de Gestão de Riscos de Inundações - (alínea d) do número 2);
- Todas as áreas com “aproveitamentos hidroagrícolas” - (alínea e) do número 2);
- 16 das 19 áreas classificadas como REN (Reserva Ecológica Nacional) nos termos do respectivo regime jurídico em vigor - (alínea a) do número 3);
- Todas as terras “classificadas como classe A1 ou solos classificados como classe A e classe B” e integradas em RAN (Reserva Agrícola Nacional).
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