SANTUÁRIO DA NOSSA SENHORA DO CABO ESPICHEL – SESIMBRA – 2ªParte

(Este texto corresponde à segunda parte do meu anterior post (1ª. parte), iniciando com a sua última frase.) 

O que me lembro foi da promessa de “potenciar a requalificação do edificado do Santuário do Cabo Espichel e intervencionar a zona envolvente, nomeadamente o aqueduto”. 

Todos sabemos que “potenciar a requalificação” não é sinónimo de “concessionar a exploração (de um Santuário) para fins turísticos”. É de facto uma ideia inovadora de requalificação. Arrisco dizer até, única no mundo. E, surpreendentemente (pelo menos para mim), deliberada unanimemente pelos deputados da Assembleia Municipal, que tomaram a decisão, baseados sabe-se lá em quê e porquê, de transformar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel num empreendimento turístico. 

Os dados públicos dão-nos a conhecer que o Santuário do Cabo Espichel foi integrado no conjunto de património do estado português susceptível de vir a ser arrematado em hasta pública, tendo em vista a sua recuperação e utilização para fins turísticos. Sobre os critérios de recuperação nem uma palavra. Sobre o programa turístico definido: imóvel para fins turísticos, podendo ser um estabelecimento hoteleiro; um alojamento tipo hostel; ou outro projecto turístico (à escolha do privado que ganhar a concessão). E as condições gerais fixadas pela Assembleia Municipal definem: concessão de 50 anos, com uma renda anual de cerca de 11 mil 270 euros (pouco mais de 900 euros por mês; trocos). 

E já consta no portal REVIVE, que identifica uma série de património português que pode ser arrematado por privados, tendo em vista concessões para fins turísticos. É o único Santuário que consta na lista REVIVE e, não tendo ainda o concurso aberto, disponibiliza três desenhos com a área de intervenção delimitada (e que pode ser visualizada aqui). 

Nessa planta é identificada a área de intervenção, que integra a totalidade da ala norte das Hospedarias (onde se incluem a Casa da Ópera e as ruínas a norte/poente da Igreja), cerca de metade da ala sul das Hospedarias, (excluindo o café existente) e, uma faixa de terreno (de largura variável) circundando todo o edificado (incluindo uma faixa a poente, confinante com a Igreja, ou para ser mais específica, colada à igreja ou, de uma forma mais clara, o limite da área a concessionar coincide com as próprias paredes da igreja, não definindo qualquer perímetro de protecção à mesma - como seria de esperar num imóvel de interesse público). 

Aparentemente será possível ao promotor privado anular as passagens laterais à igreja, (em arco) uma vez que o terreno circundante passa a ser de uso privado. E numa faixa a sul, confinante com a totalidade da ala sul das Hospedarias, coincidindo com as suas paredes e sem qualquer perímetro de protecção (como seria de esperar, mais uma vez, num imóvel de interesse público). 

Nesta verdade, a procissão realizada pelos sesimbrenses, no último fim-de-semana de Setembro, terá forçosamente de alterar o seu percurso secular. Ou então o promotor privado, na sua boa fé, autorizar a invasão do seu espaço privado, sobre o qual paga uma quantia de cerca de 900 euros mensais. Acresce que, toda esta área de terreno a concessionar a um promotor privado, irá condicionar todos os eventos dedicados às festas em Honra da Nossa Senhora do Cabo Espichel, sejam eles dos sesimbrenses ou dos círios existentes e que mantém o rito. 

É também apresentada numa ficha dedicada ao Santuário, aquele que será o programa base, composto por três dados. O primeiro diz tratar-se de um Imóvel de Interesse Público. O segundo identifica a área bruta total de construção igual a 5.937,00m². E o terceiro estima o número de quartos em cerca de 66. Sobre a área de terreno a ser concessionada, não existe indicação de qualquer área. 

Com estes dados, e analisando a planta, o que se constata é que a área a concessionar será uma espécie de ilha dentro do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, esquecendo a envolvente (terreiro e cruzeiro) e também, a envolvente construída que não será objecto de qualquer tipo de intervenção (Igreja e restante área da ala sul das Hospedarias).   

Sendo esta a área definida e a concessionar para fins turísticos, convém lembrar que, todos os empreendimentos turísticos têm de cumprir as normas legais estipuladas assim como as normas técnicas de construção aplicáveis à generalidade do edificado. E cumprindo essas normas, em que lugar da área delimitada irá ficar localizado o depósito de gás? E os painéis solares? E a maquinaria dos ares condicionados? E os extractores e condensadores? E os contentores de lixo? E a publicidade? E os toldos? E a iluminação? E todas as áreas técnicas necessárias e imprescindíveis ao bom funcionamento do empreendimento? 

E se o promotor privado optar por implementar um hotel com piscina, onde irá localizar a mesma? Na traseira da Igreja, voltada a poente? Com uma vedação alta e opaca protegendo dos olhares atrevidos dos romeiros e peregrinos e círios e turistas e curiosos? 

E o restaurante? Terá a sua esplanada ali ao lado do Cruzeiro? Ou optará por ocupar a faixa de terreno voltado a norte, usufruindo da vista sobre Lisboa e aproveitando a Casa da Ópera para fazer de cozinha e despensa de dia? E será que estará a pensar num SPA?, com piscinas quentes ao ar livre, abertas sobre o vale a sul, com vista privilegiada sobre o Farol?

Será que o promotor privado, para rentabilizar o investimento, irá implementar uma galeria comercial nas arcadas das Hospedarias, fazendo depois uma subconcessão daquelas, para a exploração de todo o tipo de lojas e bares, a debitarem directamente para o terreiro com os seus apetrechos, iniciativas e ruídos? 

E como será efectuado o acesso automóvel ao hotel, nomeadamente para abastecimento e manutenção? E terá estacionamento para os hóspedes?, talvez ali naquela faixa a norte, marginal à arriba que desce para os Lagosteiros?

De certeza que existem respostas a todas estas dúvidas. E se por um acaso ainda não existem, irão existir aquando da abertura do concurso público por parte do programa REVIVE, que definirá entre outros, o Caderno de Encargos. Ou na fase de licenciamento das obras a efectuar, em que caberá à autarquia (enquanto entidade licenciadora) definir as regras a cumprir para além daquelas que resultam da aplicação dos regulamentos gerais em vigor. E claro, a decisão política tomada por todos os órgãos concelhios, foi em consciência, porque esta é a única forma de recuperar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel. 

Lamento informar que não, esta não é a única forma de recuperar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel. Mas, a materializar-se essa decisão, sem regras definidas e sem um programa rigoroso para a implementação de um empreendimento turístico, o Cabo Espichel manterá apenas o epíteto de Santuário no lettering do toldo da esplanada do restaurante. Ou quiçá, e fica aqui a ideia, ser o próprio nome do hotel. Assim uma coisa fina, do tipo: Santuarium Hotel.  

Valha-nos Deus. Honestamente, espero sinceramente, (e apesar de haver muita gente a rezar a todos os santinhos para que apareça um promotor interessado no Cabo), que uma força divina, aquela que «nos reduz a uma insignificância terrena e nos amplia a consciência até à fruição do sublime», anule completamente esta decisão de pouco mais de duas dezenas de homens e mulheres, que com o seu livre arbítrio, decidiram unanimemente, (como se fossem os anciães da história, do património, da cultura, da religiosidade e da fé), transformar um Santuário num empreendimento turístico. 

Volto novamente às palavras do delegado do Pontifício Conselho da Cultura: «Há lugares com alto valor e significado simbólico. Mantêm-se vivos na memória histórica por serem espaços onde aconteceram eventos decisivos na história da fé de uma comunidade». Fé que permaneceu até aos dias de hoje. Nomeadamente por parte daqueles que são a raiz histórica da vila de Sesimbra: os pescadores. E também de todos os outros que são a génese da freguesia do Castelo: os agricultores. 

Talvez se entenda melhor o que tento explicar, se pensarmos em “pexitos” e “camponeses”. É esta a génese de Sesimbra. E são os “pexitos” e os “camponeses” que, no Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, estão juntos, unidos pela fé.

E se toda esta decisão é surpreendente, reparem agora no que foi dito na reunião de Câmara sobre o orçamento de 2021, justificando a omissão de verbas para alguns projectos que podem vir a surgir durante o ano de 2021 e que, conduzirão a alterações orçamentais, nomeadamente «desviando» o dinheiro dos sesimbrenses, para algumas dessas obras que são esperadas, nomeadamente a transformação do Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel num hotel:

Se tivermos a reabilitação do Cabo Espichel e a sua fruição numa perspectiva turística e cultural, temos mais meio milhão de euros para investir, para fazer lá chegar a rede de saneamento. Portanto, se houver, e todos nós esperamos que haja, alguém que vá a jogo e um promotor, se isso acontecer, nós sabemos que ainda temos mais meio milhão de euros.”

Ou seja, meio milhão de euros integralmente pago pelos cofres da Câmara e que cito: “graças a uma gestão mais rigorosa que tivemos nos últimos anos”, a Câmara tem actualmente, e volto a citar: “uma boa capacidade de endividamento”. Endividamento esse, que terá de ser pago. Ou seja, haja ou não endividamento, se “a reabilitação do Cabo Espichel e a sua fruição numa perspectiva turística e cultural” avançar, serão os sesimbrenses a pagar a rede de saneamento necessária para o empreendimento turístico funcionar. Meio milhão de euros. Será, grosso modo, o montante que a Câmara irá receber do aluguer do Santuário (desculpem, do futuro hotel) a um promotor privado, ao fim de 50 anos! 

Com meio milhão de euros resolviam-se a maior parte dos problemas da rede viária do concelho de Sesimbra. Mas não podemos esquecer que a deliberação foi tomada, pelos órgãos autárquicos, por unanimidade. O que significa que é para todos uma prioridade, transformar o Santuário num hotel.

Meio milhão de euros do orçamento camarário, sem recurso a apoios governamentais ou europeus. Pago totalmente pelos impostos, taxas, licenças,… despendidos pelos sesimbrenses. Não me lembro de em tempo algum, a autarquia ter «desviado» verbas para ir a correr construir uma rede de saneamento para um qualquer promotor privado. O que me lembro é que paulatinamente, a autarquia tem vindo a executar a rede de saneamento nas três freguesias do Concelho, para satisfazer as necessidades dos seus munícipes. E em pleno século XXI, muitos continuam a utilizar fossas sépticas, à espera da construção, da renovação ou da ligação à conduta pública (é só ver a verba atribuída no Orçamento de 2021 para a rede de esgotos). Será que é daqui, desta verba, que serão «desviados» meio milhão de euros para acudir ao promotor privado do Santuarium Hotel? Afinal os sesimbrenses já estão mais do que habituados a utilizar fossas sépticas e esperar pela conduta pública… se demorar mais um ano ou menos um ano, não tem importância nenhuma. Agora, o promotor privado que vem salvar o Santuário da Nossa Senhora do Cabo Espichel, esse sim, tem de ser tratado nas palminhas! E claro, sem esquecer todos os custos inerentes (conhecidos por trabalhos a mais), como seja, por exemplo, a repavimentação. 

Que nos ajude a Nossa Senhora do Cabo Espichel, neste estado de pandemia e da crise económica profunda que atinge o país e Sesimbra. E que, se existirem «desvios» orçamentais, sejam para ajudar os sesimbrenses, os “pexitos”, os “camponeses” e todos os outros que compõem a massa humana do concelho de Sesimbra. Que os «desvios» visem colmatar as carências das famílias, das empresas, da restauração, dos serviços e actividades ligadas ao turismo. Pelo menos nesta época pandémica e de uma crise social e económica sem precedentes. 

(continua)

limk para a 3ª PARTE


FONTE DAS IMAGENS: retiradas do livro CABO ESPICHEL, EM TERRAS DE UM MUNDO PERDIDO (fotos: Carlos Sargedas


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