A AUSÊNCIA DE ESTRATÉGIA QUE RESULTA EM ESTRATÉGIA QUE CONVENCE TUDO E TODOS

Pode a ausência de estratégia transformar-se, ela própria, em estratégia? Pode essa estratégia, que resulta da falta de estratégia, convencer tudo e todos? Sim pode; em Sesimbra pode. 

Naquele que foi o riquíssimo “período antes da ordem do dia” da primeira reunião da sessão da Assembleia Municipal de Sesimbra, realizada no passado dia 30 de Setembro (e sobre o qual teria tanto a dizer) irei apenas e para já, abordar um dos temas debatidos e deliberados.

Refiro-me à Recomendação apresentada pela bancada do Bloco de Esquerda relativamente à “circulação de viaturas pesadas na Rua 4 de Maio”. Esta Recomendação (a ser remetida à Câmara Municipal) visava apenas e só, alertar para aquele que é um problema diário (de décadas) e que se agrava de ano para ano: a saída e entrada de veículos pesados de transporte de pescado do Porto de Sesimbra. E na ausência de estimativa temporal para a execução e consolidação da tão ansiada variante ao Porto de Abrigo, a recomendação propunha o estudo de uma solução para a Rua 4 de Maio que facilitasse a passagem de veículos pesados carregados de peixe e que têm enorme dificuldade em percorrer aquela via, nomeadamente no período estival. 

Importa dizer que nenhuma das bancadas municipais encarou a Recomendação como uma solução definitiva para a saída do pescado da lota de Sesimbra. Seria apenas, uma solução provisória, que amenizasse desde já os constrangimentos da Rua 4 de Maio (dado que esta é a única saída existente) até que, um dia, a variante ao Porto de Abrigo fosse efectivada. 

Depois de várias intervenções, mais ou menos coincidentes, atente-se na intervenção da bancada da CDU sobre a solução (construção da variante) para o problema existente (e que transcrevo textualmente):

A solução existe, tá estudada, tá orçamentada, tá desenhada, tá projectada, há muito tempo e é a única viável; não há volta a dar.

E também na explicação prestada pelo Presidente da Autarquia (sobre a construção da variante e que transcrevo parcial e textualmente):

(…) que nós voltássemos à carga sobre um projecto e um processo que é estruturante para Sesimbra (…)”. 

Ou seja, “que nós voltássemos à carga”, reivindicando a construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra, uma vez que a estimativa (já efectuada e avançada pelo Presidente da Autarquia) corresponde a um valor entre os 5 e os 6 milhões de euros para a execução daquele troço até ao Zambujal e que liberta a Rua 4 de Maio de veículos pesados, devolvendo-a ao peão, com bolsas de estacionamento para veículos ligeiros. E estes 5 ou 6 milhões de euros não são (e transcrevo novamente e textualmente a explicação prestada pelo Presidente da Autarquia):

“um ónus para a administração central tendo em conta, já agora rectificar, que se mantém no Plano Nacional de Investimentos 2030 a variante ao Porto de Abrigo e portanto, mantendo-se lá significa que se mantém a prioridade de investimento, o que não conseguimos foi pô-la no PRR e portanto não tendo, não tá no PRR mas pode tar perfeitamente no orçamento de estado. Portanto isso é, sabendo que os fundos comunitários e particularmente os fundos estruturais não financiam rodovia, terá de ser eventualmente pelo orçamento de estado e eu acho que isso seria, salvo melhor opinião, o fundamental para nós neste momento irmos à carga (…)”.

Ou seja, de acordo com a informação prestada pelo Presidente da Autarquia, a construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra continua consignada naquele que é o Programa Nacional de Investimentos para a próxima década (PNI-2030). E apesar de “não conseguimos pô-la no PRR”, haverá que voltar “à carga” para que os 5 ou 6 milhões de euros saiam directamente do orçamento de estado (de 2023? 2024? 2025? 2026? 2027? 2028? 2029? 2030?) e sejam destinados à construção da tão ambicionada variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra, dado que, estando prevista no PNI-2030 significa que o estado, o governo, “mantém a prioridade de investimento” nesta obra “que é estruturante para Sesimbra”.

A bancada do PS reagiu com alguma surpresa (digo eu) ao “irmos à carga” e a estas declarações. Transcrevo parcial e textualmente:

Tal como foi mencionado, neste mandato não, não houve nenhuma iniciativa no sentido de reclamar a construção da variante, há a confirmação que o senhor Presidente acabou de nos dar também, de que continua em PNI - Programa Nacional de Investimentos 2030 – e portanto não tá perdido de vez (…)”.

Ou seja, a CDU pode contar com o PS para “irmos à carga”. Até porque de acordo com “a confirmação que o senhor Presidente acabou de nos dar também”, a variante, não estando prevista do PRR, está no PNI-2030. Nem sei que diga.

Na página do governo (link) constam 11 documentos que constituem o Programa Nacional de Investimentos 2030 (PNI-2030), definindo e cito “os investimentos estratégicos que o País deverá lançar na próxima década, estando articulado com os objetivos estratégicos definidos para o Portugal 2030, relativamente aos quais foi possível alcançar um amplo consenso social, económico e político.”

E os “investimentos estratégicos que o País deverá lançar na próxima década” correspondem a vários projectos (são identificados apenas os 77 projectos mais relevantes e estruturantes a realizar no país) e programas de financiamento (a executar até 2030), distribuídos (entre outros) por projectos relativos a transportes e mobilidade, nomeadamente em investimentos rodoviários e marítimo-portuários.

Naquelas que são identificadas como “fichas de investimento” nomeadamente em relação aos “transportes e mobilidade – marítimo-portuário” (link – página 52), surge o Porto de Setúbal (ficha identificada como M4). Do conjunto de 9 projectos enumerados, não consta a variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra. Em nenhum momento é identificada a execução da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra. Aliás, o único projecto identificado na ficha relativa ao Porto de Setúbal, a ser dinamizado em Sesimbra é relativo a, e cito: “Melhorar as condições de segurança das embarcações de pesca no Porto de Pesca de Sesimbra”. 

Sobre esta matéria, surge também uma “ficha de investimento” relativa ao “programa investimento em portos fora da rede principal” (ficha identificada como M7 – página 55). E nesta, apenas surgem os portos da Figueira da Foz e de Viana do Castelo (num total de 7 projectos). Ou seja, o Porto de Sesimbra e a sua urgente variante também não estão considerados no “programa investimento em portos fora da rede principal

Mas sendo a variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra um investimento rodoviário, importa referir as “fichas de investimento” relativas à “rodovia”. E em nenhuma das 8 fichas, com 49 projectos identificados (nomeadamente a construção de várias variantes no território nacional) surge considerada, prevista, programada, a construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra. 

Atente-se ainda na Resolução da Assembleia da República n.º 154/2019 de 23 de Agosto, (link) relativamente ao Programa Nacional de Investimentos 2030 e que descreve exaustivamente todos os projectos previstos para a próxima década.

E antes de avançar permitam-me dizer que, para a definição dos projectos prioritários e fundamentais para o país e para as regiões autónomas e que deveriam ser consolidados durante a próxima década, foi constituído um grupo de trabalho coordenado por um deputado do CDS-PP e composto por dois deputados do PSD e um deputado de cada um dos seguintes partidos: PS, BE e PCP. 

Uma das várias deliberações deste grupo de trabalho foi o de ouvir as Áreas Metropolitanas (nomeadamente a AM de Lisboa da qual Sesimbra faz parte) para que apresentassem as suas reivindicações. Na lista de prioridades apresentadas pelas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, (e também pelas Comunidades Intermunicipais do País e pelos Governos Regionais dos Açores e da Madeira), não consta a construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra (e que pode ser confirmado aqui – página 9). 

Também os grupos parlamentares da Assembleia da República apresentaram várias propostas ao grupo de trabalho relativamente àquelas que seriam as prioridades de financiamento a realizar no país e que integram a Resolução da Assembleia da República n.º 154/2019 de 23 de Agosto. Apenas os grupos parlamentares do PSD (página 11 a 19), PS (página 19 a 31) e CDS-PP (página 31 a 34) apresentaram propostas. O grupo parlamentar do PCP não apresentou qualquer proposta. Nada.

(E permitam-me: ora aqui está mais um belo slide para a CDU de Sesimbra apresentar: 

  • no âmbito do PNI-2030, o grupo parlamentar do PCP não apresentou uma única proposta de investimento prioritário a realizar no país; 
ou um outro slide mais concreto: 

  • o grupo parlamentar do PCP não apresentou um único projecto para que o mesmo fosse consignado no PNI-2030, nomeadamente a construção da variante ao Porto de Abrigo e “que é estruturante para Sesimbra”.
Fica a ideia.)

É no conjunto de mais de 100 propostas apresentadas pelo grupo parlamentar do PS que surgem 4 referências a Sesimbra. A primeira na página 34 e que transcrevo:

1. “Intervenção na N379 — Prolongamento da Variante Setúbal-Sesimbra, no sentido nascente (Palmela) e benfeitoria do traçado.”

As restantes surgem na página 35, e transcrevo:

2. “Construção da variante da N377 à Verdizela para acesso à A33, no âmbito dos planos urbanísticos da Mata de Sesimbra Norte, com comparticipação das entidades promotoras.” 

3. “Criação uma variante que ligue o Casal o Sapo à N378 (Nó de Negreiros).”

4. “Estudo de viabilidade técnico-financeira das acessibilidades para a ligação entre o Porto de Sesimbra e a rede viária nacional (Variante ao Porto de Sesimbra).”

Vamos por partes: 

  • A primeira proposta visa intervir (ou seja, realizar obra) na EN 379 que liga Sesimbra a Setúbal, prolongando e melhorando o traçado da variante para Palmela. Reitero: realizar obra.
  • A segunda proposta visa construir (executar, realizar, implementar) a variante fundamental em termos de acessos aos empreendimentos turísticos da Mata de Sesimbra Norte (não podemos esquecer que a Mata de Sesimbra é, desde 2009, um PIN - Projecto de Interesse Nacional que visa a consolidação de mais de 17 mil camas). Reitero: construir.

  • A terceira proposta visa a criação (ou seja, realizar obra) da variante que liga o Casal do Sapo à EN378 (e que serve, directamente, os empreendimentos turísticos da Mata de Sesimbra, classificados como PIN desde 2009). Reitero: realizar obra.

  • A quarta e última proposta visa estudar (não é realizar obra) a viabilidade técnica e financeira (ou seja, analisar as soluções e os montantes previstos para realizar a obra). Desse estudo de viabilidade, podem sair duas conclusões (como é óbvio): 
    • a variante é viável técnica e financeiramente, pelo que a mesma poderá vir a ser realizada ou, 
    • a variante não é viável nem técnica nem financeiramente e o melhor é esquecer o assunto. 

E para realizar este estudo, é apontada a próxima década. Quer isto dizer que, só depois de 2030 é que, eventualmente, serão conhecidas as conclusões e as possíveis soluções.

Concluindo:

  • A construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra não está prevista no Programa Nacional de Investimentos 2030 nem é uma prioridade de investimento para próxima década.

  • A construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra sendo “um projecto e um processo que é estruturante para Sesimbra”, não está prevista nem considerada no PNI-2030. O que está previsto no PNI-2030 é a construção de três variantes: uma para Palmela e duas que servem directamente os empreendimentos turísticos da Mata de Sesimbra. Quanto à variante do Porto de Abrigo, o que o PNI-2030 prevê é a execução de um estudo. Um estudo! Um estudo é um estudo. Não é a execução de obra!

  • Melhor explicando: a variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra não está prevista nem no PRR nem no PNI-2030, nem em nenhum programa de financiamento para a próxima década. Significa portanto que a Rua 4 de Maio será, até muito depois do ano 2030, a única entrada e saída existente de acesso ao Porto de Abrigo, suportando caoticamente e indefinidamente, a circulação de veículos pesados de transporte de pescado.

Permitam-me repetir o parágrafo inicial:

Pode a ausência de estratégia transformar-se, ela própria, em estratégia? Pode essa estratégia, que resulta da falta de estratégia, convencer tudo e todos? Sim pode; em Sesimbra pode. 

A Recomendação apresentada pelo Bloco de Esquerda foi votada unanimemente, baixando à "Comissão de Transportes, Mobilidade e Segurança", para que seja analisada no sentido de vir a ser produzida uma nova “Recomendação” unânime e mais sustentada em termos de soluções a preconizar para “voltar à carga” e/ou, para descongestionar a Rua 4 de Maio.

E permitam-me a ousadia: que a Recomendação recomende à Câmara Municipal a definir de facto e de uma vez por todas uma estratégia relativamente ao trânsito, ao estacionamento, aos acessos rodoviários, cicláveis e pedonais, às zonas de descanso e ensombramento (face ao impacto das alterações climáticas), aos postos de carregamento eléctricos, às áreas de serviço de autocaravanas, às paragens de transportes públicos, aos locais de cargas e descargas, às zonas de carbono zero,… sabendo-se que a estratégia estará definida naquele que é um “instrumento estratégico de excelência” e que, pasme-se, a maioria dos deputados e vereadores eleitos a 26 de Setembro de 2021 nem sequer conhece; nem sequer sabem qual é afinal a estratégia preconizada e constante nas plantas de ordenamento, passado que está um ano de mandato.

Aguardemos pela nova Recomendação. Lembrando que uma Recomendação é apenas isso mesmo: uma Recomendação. Sem obrigações ou consolidações reais, por parte da Câmara Municipal, do que quer que seja recomendado (e são inúmeros os exemplos existentes, alguns com décadas).

Quanto à circulação de veículos pesados na Rua 4 de Maio, irá continuar indefinidamente. 

Quanto a soluções para minimizar o caos naquela que é a única entrada e saída do Porto de Abrigo que possibilita a passagem de veículos pesados carregados de peixe, teria tanto a dizer. Mas o post já vai longo e não quero influenciar de maneira nenhuma os trabalhos da "Comissão de Transportes, Mobilidade e Segurança".

Arregacem-se as mangas. Volte-se “à carga sobre um projecto e um processo que é estruturante para Sesimbra”. Para que no futuro PNI-2040 a variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra esteja considerada e prevista. Ou para que num outro qualquer PRR que venha a ser definido, a variante esteja consignada. 

Ou então, e ao contrário do que foi afirmado pela bancada da CDU de que a variante estudada, orçamentada, desenhada, projectada “é a única viável; não há volta a dar”, encontrem-se soluções diferentes, amigas do ambiente, sustentáveis e exequíveis (uma linda frase a terminar este extenso post, aparentemente vazia, despropositada e sem qualquer tipo de nexo e que sustentará provavelmente a necessidade consignada no PNI-2030 de realizar apenas um estudo e não, a obra).

A construção da variante ao Porto de Abrigo de Sesimbra não está prevista nem considerada no PNI-2030. 

A menos que (e não seria inédito, conforme referi no post “E AGORA?”) a Câmara e o Presidente da Câmara tenha mais informação sobre o PNI-2030, do que aquela que é a informação que o governo português disponibiliza aos cidadãos portugueses através da sua página oficial. E se assim for, perdoem-me desde já este post e todo o seu conteúdo.

A existir uma adenda não pública (mas do conhecimento da Câmara e do seu Presidente) àqueles que são os 77 projectos fundamentais e mais relevantes elencados no PNI-2030, e aqueles que são todos os projectos descritos exaustivamente na Resolução da Assembleia da República n.º 154/2019, compreender-se-á a afirmação da bancada do PS quando repete e vinca que sobre a variante, “há a confirmação que o senhor Presidente acabou de nos dar também, de que continua em PNI”.





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