ONDE ESTÁ O FRISO AZUL? - SESIMBRA

Há exactamente uma década, era apresentado um Plano de Acção para o desenvolvimento turístico do Concelho de Sesimbra. Dos vários projectos, relembro um que se intitulava “Criação de roteiros urbanos vivos”. E a ideia seria a de desenvolver circuitos pelas ruas, tendo por base as referências históricas e identitárias da Vila de Sesimbra, nomeadamente o seu património edificado. 

Vem isto a propósito de uma intervenção que ocorreu num dos edifícios (na minha opinião) mais marcantes da Vila de Sesimbra. Que fique bem claro que não tenho nada, absolutamente nada contra a reabilitação de construções, nomeadamente no centro histórico de Sesimbra. Mas caramba, pintar azulejos do século XIX com tinta? Anular uma porta em madeira maciça trabalhada, fechando-a com um painel liso de contraplacado forrado com uma película autocolante com a impressão de uma porta? 

Conseguem imaginar? Vou repetir: 

  • pintaram azulejos artesanais, com mais de cem anos!!, com uma tinta qualquer, pintando também pedaços de reboco e das cantarias existentes;
  • tiraram a porta maciça de madeira trabalhada existente e colocaram um painel liso de contraplacado, forrado com uma película autocolante com a impressão de uma porta (manhosa) do tipo “antigo.” 
INACREDITÁVEL.

Atente-se naquilo que está escrito na Área de Reabilitação Urbana (disponível AQUI) e que classifica o núcleo antigo da Vila de Sesimbra como: “Zona Nuclear, que integra o núcleo urbano da vila, composto por largas dezenas de edifícios centenários (…)” 

Nesta “Zona Nuclear”, são estabelecidos um conjunto de objectivos que visam e transcrevo:

  • Afirmar os valores patrimoniais, materiais e simbólicos como factor de identidade, diferenciação e competitividade urbana, preservando e valorizando o património, que confere à vila características únicas e uma ambiência própria, que pode, e deve, ser aproveitada como um factor de promoção turística do destino Sesimbra; 
  • Garantir a protecção e a valorização do património cultural, através de uma melhoria do enquadramento urbano em que se insere, mantendo e reforçando a singularidade da vila, potenciando desta forma um recurso de elevado valor, que pode captar importantes fluxos turísticos para a vila.” 
E depois destes objectivos, estabelece um conjunto de regras para as operações urbanísticas a realizar nesta “Zona Nuclear” e que transcrevo apenas parte:

  • Garantir a preservação e valorização dos edifícios; 
  • Respeitar e valorizar o conjunto urbano onde se inserem;
  • Os azulejos que revistam fachadas, em regra, devem ser mantidos, promovendo-se, no caso de falhas ou degradação, a reposição em azulejo de igual composição e cor, excepto nos casos em que os mesmos sejam elementos dissonantes e desqualificadores do edifício; 
  • As molduras dos vãos, os socos e os cunhais devem ser mantidos, quer sejam em pedra, ou em argamassa, assegurando-se a sua substituição em caso de patologias, e a sua continuidade em novos vãos criados;
  • A reabilitação de um edifício deve manter a uniformidade dos vãos que compõem as fachadas, em dimensão, molduras, forma, e desenho, materiais e cores das caixilharias.” 
Atente-se agora naquilo que está escrito na Operação de Reabilitação Urbana (disponível AQUI) e que enumera um conjunto de Edifícios com Relevância Arquitectónica e Histórica, localizados na “Zona Nuclear” e, no caso que descrevo, diz tratar-se de um edifício do século XIX, com “fachadas forradas a azulejo de cor garrida. Piso em águas furtadas. Fachadas encimadas por platibanda. Dois óculos na fachada lateral. Guardas ornamentadas nos vãos dos pisos superiores”, referindo uma particularidade do seu interior: “uma escadaria única.”

No post PATRIMÓNIO CULTURAL - SESIMBRA referi a Lei de Bases de Protecção e Valorização do Património Cultural, entre outros, o seu artigo 2º., número 1: “integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura, sejam portadores de interesse cultural relevante.”

E pergunto: será que a delimitação de uma Área de Reabilitação Urbana e a definição de uma Operação de Reabilitação Urbana foram apenas, como diz o povo, “para inglês ver?” Ou será que servem apenas para definir isenções fiscais a quem, alegadamente, recupere património? Caramba, ninguém vê? Ninguém se interessa? Ninguém acompanha este tipo de intervenções rotuladas de ‘recuperação arquitectónica'? 

Há exactamente uma década, no Plano de Acção que acima referi, eram mencionadas uma série de ruas, de lojas e de edifícios que deveriam integrar os roteiros urbanos vivos, porquanto estavam em causa referências históricas e identitárias da Vila de Sesimbra. Há exactamente uma década. Da lista de edifícios e lojas identificadas, restam hoje, apenas dois: o Grémio e a Farmácia Lopes. Os restantes, fruto dum hipotético progresso absurdo, especulativo e desprovido de identidade, desapareceram. E é ver cantarias de pedra centenárias, cimentadas e pintadas de branco, cinzento ou amarelo. Caixilharias de madeira substituídas por perfis em alumínios. Portas que eram em madeira maciça trabalhada, são hoje belos exemplares de alumínio lacado verde ou branco. Casas que eram brancas estão agora forradas de pequenos azulejos vidrados coloridos e lisos… 

Sesimbra esqueceu a sua origem, a sua memória, a sua identidade. Será só mais uma vila, igual a tantas outras, cheia de casas sem alma, sem história, sem qualquer tipo de interesse. Para a memória futura, ficarão as fotografias antigas daquela Sesimbra do casario branco e telhados vermelhos. Daquela Sesimbra com casas abastadas de outros tempos, revestidas de azulejos e com as suas varandas em ferro forjado. Daquela Sesimbra de estatuetas nas platibandas e pedra nos cunhais. 

Hipoteticamente, a obra realizada nem sequer carece de licenciamento… não fosse a alteração de fachadas. Mas essa, já seria matéria para um outro post. 

É pena. É pena esta falta de sensibilidade em preservar valor. É urgente fazer com que esta política de permissão perante hipotéticas obras de reabilitação e recuperação de edifícios, mude drasticamente e rapidamente. Pela memória e identidade de um povo, de uma Vila que é de todos nós, e que conta com mais de oitocentos anos de história. 

E já agora: uma das marcas identitárias da Capela do Espírito Santo dos Mareantes é, era, o seu friso azul, representando uma ligação ao céu divino e infinito. Para quando a reposição do mesmo? E a pintura de toda a Capela, antes que se torne uma obra de conservação milionária? E o edifício dos Paços do Concelho?, não estará também na altura de proceder a reparações e pinturas? Antes que a degradação avance e promova uma imagem degradante daquele que é o edifício sede do poder executivo? E não sei se é dos meus olhos mas, quando olho para o muro do Auditório Conde Ferreira vejo-o preto-acinzentado e cheio de verdete, em vez de o ver branco. Mas como os olhos humanos vêem a mesma coisa de maneira diferente, (conforme referi AQUI) é provável que se trate apenas de um fenómeno. Os meus olhos vêem-no preto-acinzentado e cheio de verdete. Provavelmente, outros olhos, vêem-no branquinho, branquinho!

Conforme tenho referido, o exemplo deve vir daqueles que gerem o território e neste caso, o exemplo será o de preservar valor, história, identidade. E neste caso, tratar-se-á de preservar três dos edifícios mais emblemáticos e marcantes da Vila de Sesimbra: a sede da Assembleia Municipal (Auditório Conde Ferreira), o edifício dos Paços do Concelho e, um dos locais de culto mais antigos e importantes da Vila de Sesimbra (Capela do Espírito Santo dos Mareantes).

Relembro que no caso da Capela do Espírito Santo dos Mareantes, a mesma foi recuperada com o dinheiro dos impostos dos sesimbrenses. O mínimo que se exige é que seja mantida e preservada. Sobre o Auditório Conde Ferreira, todos se lembrarão que não há muito tempo, foi recuperado e pintado de novo. Tudo pago com os impostos sesimbrenses. Pergunto: então a obra de reparação e pintura do Auditório não incluiu os muros? E porquê? Sobre o edifício dos Paços do Concelho, sinceramente, não me lembro de algum dia estar no estado em que está. O mínimo que se exige é que a Câmara preserve, conserve e mantenha limpos os edifícios públicos que são da sua responsabilidade. Dois desses edifícios representam o poder local. Haja dignidade pelas entidades que albergam.

Por fim, e porque vem no mesmo seguimento, pergunto: e a Moagem de Sampaio? Não seria de pensar em limpar, recuperar e pintar? A menos que as obras de conservação não sejam por agora adequadas, perante a eventual construção do Tribunal? (com a palavra eventual quero dizer, que não está definido temporalmente quando será construído o Tribunal) Sabendo-se que as obras do Tribunal irão interferir profundamente com as estruturas da Moagem… mas isso será uma questão a abordar no futuro… quando a obra se iniciar e a indignação geral se instalar (digo eu, que apenas conheço as imagens 3D e uma planta geral de implantação que foram publicitadas na página da Câmara Municipal). Aguardemos.

Espero sinceramente, que alguma atitude seja tomada. E que esta ideia peregrina de substituir portas maciças de madeira por painéis lisos de contraplacado forrados com uma película autocolante com a impressão de portas (manhosas) do tipo “antigo”, não se torne viral e comece a invadir o núcleo histórico da Vila de Sesimbra. Como aquela nova moda implementada este século, de demolir edifícios, reconstruir e forrar com pequenos azulejos vidrados coloridos. 

Sesimbra caminha a passos largos para uma nova memória colectiva: aquela que terá azulejos artesanais e centenários pintados com uma tinta qualquer a “imitar o antigo”; aquela que terá edifícios novos forrados por pequenos azulejos vidrados coloridos (desprovidos de alma) em vez do característico casario branco; aquela que terá recuperações arquitectónicas que pintam as cantarias centenárias com tintas azuis, amarelas ou cinzentas; aquela que terá edifícios de sete pisos espalhados e descontextualizados um pouco por toda a encosta da serra; aquela que terá um mono de 9 pisos à entrada da Vila; aquela que terá um empreendimento turístico que não cumpre o índice de construção definido pelo PDM; aquela que não terá população residente; aquela que não terá estacionamento;… perdoem-me o longo post. 

Ainda bem que estamos em ano de eleições. Alguma coisa tem de acontecer. É urgente uma estratégia, uma visão, um rumo. E que acima de tudo valorize as raízes, a identidade, a memória, as pessoas, daquela que é uma das mais belas vilas de Portugal: Sesimbra.











Comentários

  1. Os “Roteiros urbanos vivos” foram uma proposta minha para o Plano de Acção, que foi aceite e aprovada, e depois "arquivada" por quem decidiu que o Plano Estratégico de Turismo não era para aplicar. Não só propus o conceito como desenvolvi alguns possíveis roteiros, como o da Rua Direita (rua da República) que incentivava os turistas a entrar na sede da Liga dos Amigos de Sesimbra e pedir para consultar os Sesimbrenses antigos, a entrar na Sesigas para apreciarem o extraordinário painel de azulejos que ornamentava a antiga sala grande do restaurante O Golfinho, e até a entrarem na loja do Zé João para verem a colecção de retrosaria e conversarem com o dono. Creio que era uma ideia com potencial, mas...

    A propósito da Capela do Espírito Santo: um dos maiores atentados a este edifício foi a construção do horrível caixote imediatamente abaixo, do outro lado da rua da República. Rafael Monteiro, na altura correspondente do Diário Popular, escreveu um artigo criticando a construção da "moradia inestética" ("A Vila de Sesimbra, de características inconfundíveis, precisa de ser defendida de atropelos ao seu traçado urbanístico", 13-1-1960).
    Consequências? O Presidente da Câmara (José Palmeirim) e o arquitecto-consultor (Nereus Fernandes, também autor do "projecto") foram ao Castelo e agrediram fisicamente o Rafael, facto que, apesar da Censura, o jornal criticou nas suas páginas.

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    1. Confesso que tinha quase a certeza que os “Roteiros urbanos vivos” teriam sido uma proposta sua. E permita-me congratulá-lo pela excelente ideia que potenciaria toda uma nova dinâmica no centro histórico da Vila, não só para turistas mas também para os sesimbrenses em geral. Infelizmente, o PET foi arrumado numa qualquer gaveta. E pelo que sei, parece que já não serve a 'estratégia' :) e o orçamento de 2021 até tem uma verba atribuída superior a 11 mil euros para a elaboração de um novo plano estratégico de turismo. (curiosamente esta nova 'estratégia' e a necessidade de elaborar um novo PET, nunca foi divulgada publicamente; será mais uma "novidade" que se revelará como "surpresa!")

      Infelizmente, as palavras de Rafael Monteiro ainda se mostram actuais. A mim, pessoalmente, o que me provoca indignação é o facto da Câmara possuir uma ARU e uma ORU e não aplicar o trabalho que está bem feito, na gestão do centro histórico da Vila. E bastariam duas coisas tão simples: regulamentar e fiscalizar, "preservando e valorizando o património, que confere à vila características únicas e uma ambiência própria, que pode, e deve, ser aproveitada como um factor de promoção turística do destino Sesimbra" (um dos objectivos estabelecidos na ARU).

      Quanto a Nereus Fernandes e ao Presidente José Palmeirim, cresci a ouvir muitas histórias sobre eles. E sobre outros :)

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