ABERTURA DA LAGOA DE ALBUFEIRA: TRADIÇÃO, CIÊNCIA OU DINHEIRO?

Naquela que foi uma entrevista na rádio com duas horas e meia de duração, a abertura da Lagoa de Albufeira ao oceano foi um dos temas abordados. Transcrevo textualmente: “A abertura da Lagoa de Albufeira ao mar está prevista, se tudo correr bem, se as condições climatéricas o ajudarem e se a tramitação do procedimento estiver concluída, que aparentemente estará, a partir da segunda semana de Maio.

Ora a segunda semana de Maio, começa hoje. “Se a tramitação do procedimento estiver concluída” e se “tudo correr bem, se as condições climatéricas o ajudarem” ainda esta semana a Lagoa de Albufeira estará aberta… ou para a próxima semana… ou a outra semana ainda… porque o compromisso foi o de que seria aberta “a partir da segunda semana de Maio.”

Falemos da tradição. 

Transcrevo textualmente o que foi dito na entrevista da rádio: “…haveria aqui um histórico a… vá lá na consciência colectiva e na cultura das populações da abertura na sexta-feira santa, portanto seja no dia, nas vésperas, mas que ela estivesse aberta…

E de facto assim é. Num dos vários trabalhos realizados pelo Instituto da Conservação da Natureza – Centro de Zonas Húmidas (2004) é referido que: “a barra é aberta na Semana Santa (Março/Abril), à qual está ligada uma festa do calendário religioso e todo um ritual por parte da população local. Esta intervenção humana, que ocorre pelo menos desde o século XIV e era então realizada à força de braços, é actualmente efectuada por meios mecânicos.” Quer isto dizer que, pelo menos desde o século XIV e até 2018 (salvo casos pontuais) a Lagoa de Albufeira foi aberta em Março/Abril. 

Aliás, a Câmara Municipal de Sesimbra confirmou esta verdade, esta “consciência colectiva” ao noticiar em Julho de 2018 (Sesimbra Município) que a autarquia efectua sempre a abertura regular da Lagoa de Albufeira ao oceano, na época da Páscoa. E nesse ano de 2018, procedeu apenas à reabertura da barra em Julho, uma vez que a mesma havia fechado depois de ter sido aberta naturalmente em Março, fruto da passagem da tempestade Ema.

Mas, em 2019, os trabalhos de abertura da Lagoa de Albufeira ao oceano iniciaram-se no final de Junho, “pela força que tivemos naquele ano quase de de abrir uma guerra com a Agência Portuguesa do Ambiente” (palavras proferidas na entrevista) e que referenciei NOS ENCANTOS DA LAGOA DE ALBUFEIRA. E, em 2020, o Nós Sesimbra (Maio), noticiava que os trabalhos de abertura da Lagoa de Albufeira ao oceano teriam sido iniciados a 27 de Maio sendo que a abertura do canal ocorreu a 4 de Junho. Agora em 2021, temos a promessa de que será “a partir da segunda semana de Maio”. Pergunto-me o que raio aconteceu à afirmação de que a autarquia efectua sempre a abertura regular da Lagoa de Albufeira ao oceano, na época da Páscoa. Talvez seja necessária uma explicação científica. 

Falemos então da ciência. 

Mais uma vez, num dos vários trabalhos realizados pelo Instituto da Conservação da Natureza – Centro de Zonas Húmidas (2003) é referido que: “A abertura artificial da Lagoa de Albufeira ao Oceano processa-se todos os anos na altura do equinócio da Primavera (21 de Março) de forma a aumentar as possibilidades de sucesso e tempo de abertura.”

E o que diz o projecto (2013) promovido pela Agência Portuguesa do Ambiente / Administração da Região Hidrográfica do Tejo, e elaborado pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Laboratório Nacional de Engenharia Civil designado por “Criação e Implementação de um Sistema de Monitorização no Litoral Abrangido pela Área de Jurisdição da Administração da Região Hidrográfica do Tejo” (disponível na página da Agência Portuguesa do Ambiente)? Nomeadamente sobre a abertura da Lagoa de Albufeira ao oceano, as condições que se devem observar, a localização do canal e onde depositar os dragados removidos? Transcrevo: 

A eficácia da reabertura da barra será potencialmente maximizada se ocorrer em março-abril, em ciclo de águas vivas e o escoamento da água retida na laguna deve iniciar-se 2 a 3 horas depois da estofa de preia-mar, devendo, se possível escolher-se uma data na qual as condições de agitação sejam de baixa energia. O novo canal deve localizar-se no extremo norte da faixa de divagação habitual da barra, em local onde a herança morfológica do canal escavado na última abertura possibilite o guiamento de correntes e minimize a largura da barreira. Os dragados removidos durante as operações de preparação e durante os trabalhos de abertura devem ser colocados em local que não intersecte a faixa da barreira previsivelmente afectada pela divagação da barra.”

Atentem agora na descrição detalhada constante no trabalho realizado pelo Instituto da Conservação da Natureza – Centro de Zonas Húmidas, (que acima já referi) e que transcrevo parcialmente:

A eficiência e longevidade da barra dependem de vários factores (…) O processo de abertura, que dura alguns dias, deve ser efectuado:

  • de modo a que a finalização da obra coincida com época de águas vivas, a fim de assegurar um desnível máximo entre a cota do plano de água no interior da laguna e a cota das baixa-mares contemporâneos (…) devem pois escolher-se os dias de lua nova ou lua cheia ou os dois dias seguintes, momentos em que as cotas da maré baixa são mínimas;
  • de preferência com agitação de pequena vaga ou altura inferior a 1m;
  • com cota elevada do plano de água na laguna.

(…) Uma vez aberta, a barra de maré evolui naturalmente (…) variando o seu tempo de vida entre 2-3 semanas até 5-6 meses (…) a divagação da embocadura (…) prende-se essencialmente com a agitação marítima, que origina (…) deriva litoral preferencialmente para sul.”

Pasme-se com a declaração na entrevista: “…eu não sou técnico da área portanto acompanho aqui o raciocínio… não discordo dele.… (…) e a informação que tenho dos técnicos e quer da Agência Portuguesa do Ambiente, da ARH-Tejo, é que a abertura retardada da Lagoa de Albufeira é mais viável do ponto de vista da manutenção da mesma do que ela ser antecipada como era culturalmente conhecida… que tem a ver com as marés, e portanto com as movimentações das massas do oceano… (…) isto depois depende das maiores marés…

Ou seja, aparentemente e apenas desde 2019, “a abertura retardada da Lagoa de Albufeira é mais viável do ponto de vista da manutenção da mesma.” E curiosamente, serão os técnicos “da Agência Portuguesa do Ambiente, da ARH-Tejo” que, perante o estudo que promoveram em 2013 e que foi elaborado pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Laboratório Nacional de Engenharia Civil, terão chegado a esta conclusão, completamente contrária ao referenciado no respectivo estudo. Nem sei que diga. Talvez apenas dizer que, com esta declaração, foram despejados para o caixote do lixo dezenas de estudos realizados durante décadas, por entidades e profissionais que dedicaram (e dedicam) parte da sua vida ao estudo do sistema lagunar da Lagoa de Albufeira, nomeadamente da sua abertura ao oceano, “permitindo trocas sedimentares e de nutrientes e a renovação do prisma de água retido na laguna. Trata-se, portanto, de um elemento crucial no controle da qualidade da água e na prevenção da eutrofização.” (parágrafo do estudo de 2004 que acima referi). 

E eu que não percebo nada de lagunas, de aberturas de barras, de marés, de dragagens,… fiquei a saber que os cientistas, os entendidos sobre esta matéria, dizem que o mês de abertura é Março (equinócio) no limite, Abril, com a maré baixa e o plano de água lagunar mais alto que o nível do oceano. Isto porque é a força da água que sai da laguna que rompe a barra existente, ligando-a ao oceano. Ora se o nível do mar estiver acima do nível do plano da água da lagoa (ou igual), a abertura será difícil senão impossível de realizar, porquanto a força do mar trará areias para a abertura realizada, fechando-a. 

Sabendo-se que a lua influencia as marés, fui ver quais teriam sido as cotas da maré baixa do dia 21 de Março: –1.50m. E no dia 22 de Março: –1.60m. A lua nova de Maio é amanhã, dia 11. A maré baixa terá uma cota de –0.80. E no dia 12 também. Arrisco dizer (não percebendo rigorosamente nada sobre a matéria) que a abertura da Lagoa de Albufeira ao oceano ocorrerá depois de dia 17 de Maio, porquanto a maré baixa terá nesse dia –1.30m. E no dia 18, terá –1.40m. E no dia 19, atingirá –1.50m. E esperemos que chova bastante. Para que o nível do plano de água da lagoa possa subir… Depois, bem depois só para Junho… 

Lembrei-me de outras duas lagoas relativamente perto da Lagoa de Albufeira: a norte a lagoa de Óbidos, a sul a lagoa de Santo André. Ora na lagoa de Óbidos estão a decorrer os trabalhos de dragagens estimados em mais de 14 milhões de euros, tendo em vista o combate do assoreamento que fecha o canal de ligação ao oceano e ameaça a actividade de pescadores e mariscadores. A lagoa de Santo André, foi aberta a 12 de Março, sendo que de acordo com o que foi noticiado, estaria prevista uma reabertura se porventura viesse a fechar ao fim de um mês. 

Falemos então do dinheiro. 

A lagoa de Óbidos tem os seus empreendimentos turísticos, os seus campos de golf, as suas moradias e projectos de autor,… “o dinheiro move montanhas” diz o ditado popular. E as dragagens são essenciais. Para, claro está, garantir apenas a actividade dos pescadores e mariscadores 😊 Já a lagoa de Santo André está mesmo ali na costa alentejana, entre Sines e a Comporta… mas claro, o importante é promover a renovação da água e permitir a entrada de muitos peixes com interesse comercial, ou seja, mais uma vez, garantir apenas a actividade dos pescadores e mariscadores 😊  nada mais.

A Lagoa de Albufeira foi rotulada durante anos, como “área clandestina”. Também tem pescadores e mariscadores e uma actividade económica associada. Mas falta-lhe o brilho do vil metal. Talvez um dia, se os empreendimentos turísticos da margem norte se vierem a concretizar… e aí, veremos dragagens, aberturas no equinócio da Primavera, reaberturas e o que for necessário… apenas para garantir a actividade dos pescadores e mariscadores 😊 Meu Deus. Assim vai a protecção do ambiente, da biodiversidade e da sustentabilidade. 

Numa pesquisa rápida na página da Agência Portuguesa do Ambiente, constam duas candidaturas ao POSEUR 2020 (exactamente iguais) para a “Elaboração do projeto de execução de desassoreamento da Lagoa de Albufeira”. Uma das candidaturas diz ter sido iniciada em Junho de 2016, terminando em Dezembro de 2019. A outra diz ter sido iniciada em Maio de 2016 sendo que o términus será em Dezembro de 2023. O que aconteceu à candidatura de 2016? E o que irá acontecer à candidatura que termina em 2023? São valores que ascendem aos 170 mil euros.  Estamos em 2021. Não resisto a utilizar uma daquelas expressões políticas do tipo “pugnar junto da” ou  “exigir junto da” Agência Portuguesa do Ambiente, o desassoreamento da Lagoa de Albufeira e a sua regular abertura ao oceano, pelo equinócio da Primavera, conforme ocorre desde o século XIV e respeitando os estudos científicos realizados! Fica a ideia para mais uma promessa eleitoral. 

Transcrevo mais uma frase da entrevista: “…e portanto tecnicamente é a informação que temos é que o facto de retardarmos a abertura… facilita a sua manutenção e portanto a ligação ao mar e dificulta o encerramento novamente dessa mesma abertura…

Entenda-se: se a abertura da Lagoa de Albufeira for retardada não terá de ser reaberta… quando fechar fechou… fica garantida a época balnear e poupamos muito dinheiro! Os estudos, esses, não são para aqui chamados. Para que é que precisamos da ciência se a questão é económica? Além disso, há muito mais onde gastar dinheiro e aí sim, tem mesmo de ser… por exemplo na lagoa de Óbidos ou de Santo André…

Urge que a Câmara Municipal vista a camisola da Lagoa de Albufeira. E não é transformando-a numa paisagem protegida de âmbito local ou municipal. É exigindo que sejam cumpridas as disposições legais em vigor que, para além de condicionarem o uso e ocupação do território, devem contribuir inequivocamente para a conservação e manutenção daquele que é um dos sistemas lagunares mais importantes da Europa. Sistema lagunar esse, que permite um sem número de classificações e protecções e que, se desaparecer, desaparecem com ela. 

(Nota: A Lagoa de Albufeira tem dezenas de regimes de protecção e classificação, não precisará de mais um (digo eu): é SITIO RAMSAR – Zona húmida de importância internacional; integra a DIRECTIVA HABITATS, é ZONA DE PROTECÇÃO ESPECIAL – ZPE; foi designada pela SPEA/BirdLife International como Zona Importante para as Aves; integra a REDE NATURA 2000; integra áreas de Reserva Ecológica Nacional e Reserva Agrícola Nacional; integra áreas sujeitas ao regime florestal e de protecção ao sobreiro e azinheira; integra áreas no domínio hídrico; integra áreas de protecção e salvaguarda definidas pelo Programa da Orla Costeira Alcobaça-Cabo Espichel,… )

Paralelamente, a Câmara enquanto entidade competente relativamente à gestão do território urbano, deverá resolver a Lagoa de Albufeira. E aqui, podia dizer tanta, mas tanta coisa. Mas não, não vou por aí. O post já vai muito longo.

Termino com a promessa da entrevista: “A indicação que tenho dos serviços é que tá prevista a partir da segunda semana de Maio (…) avançar a operação garantindo a abertura da Lagoa de Albufeira.” 

Arrisco o dia 19 de Maio. Fica o palpite! 😊 E claro, palpite válido apenas “se a tramitação do procedimento estiver concluída, que aparentemente estará.” 




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