Partilho aqui o meu artigo de opinião no Jornal "Raio de Luz" de Abril de 2024.

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No dia em que escrevo (8 de Abril) é notícia o lançamento de um livro (cuja apresentação está a cargo de Pedro Passos Coelho) que se afirma “como uma espécie de manifesto anti-progressista”. Diz a reportagem que se trata de um livro da direita conservadora (e cito) “contra a “destruição da família” tradicional”, avançando que os (e cito) “textos falam da imposição de uma “ideologia de género” como “modelo de pensamento único”, de “disforia de género associada a várias patologias psiquiátricas”, de “senhoras, alegadamente tiranizadas, que nunca se queixavam” e do “direito à resistência” face à transformação do aborto e da eutanásia em direitos”.

Não sei onde ou quem defenderá a «“destruição da família” tradicional». Nem tão pouco onde ou quem impõe «uma “ideologia de género” como “modelo de pensamento único”». E sobre uma «“disforia de género associada a várias patologias psiquiátricas”» e a «“senhoras, alegadamente tiranizadas, que nunca se queixavam”», nem sei que diga.

E a razão de reivindicar um «“direito à resistência” face à transformação do aborto e da eutanásia em direitos”», parece dar a entender que alguém terá imposto ou obrigado outro alguém a não resistir ao que quer que fosse. 

Uns dias antes, Manuel Alegre afirmava que “revolucionário seria, hoje, cumprir a Constituição da República, no dia-a-dia.” E eu pergunto: como se poderá cumprir a Constituição da República se a esmagadora maioria dos cidadãos portugueses nunca a leu? A mim, o que me espanta, é esta ideia de muitos daqueles que, desempenhando ou tendo desempenhado funções politicas e que, em princípio, terão lido a Constituição da República, surjam com novos moralismos tentado moldar o pensamento daqueles que porventura terão uma ideia discordante ou pior ainda, tentando moralizar quem não tem sequer uma ideia. A mim, o que me espanta, é esta preocupação com a vida dos outros e não, uma preocupação de base, humanista e igualitária, que respeite a diferença e a identidade de cada um, conforme estipula a Constituição da República. 

Seria hoje de facto, revolucionário, “cumprir a Constituição da República, no dia-a-dia.” Nomeadamente (e apenas para citar parcialmente 1 dos 296 artigos da Constituição): 

A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.” (número 1 do artigo 26º.)

Seria bom que não fossem os políticos a inflamarem a opinião pública, com discursos que em nada contribuem para o cumprimento da Constituição da República. Antes pelo contrário. Promovem não a igualdade e o respeito pelos outros mas sim, a desigualdade e o ódio pela diferença dos outros. 

Entendo estas ideias apenas e também, no cumprimento, de um outro artigo da Constituição: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.” (número 1 do artigo 37º.).

Mas num mundo cada vez mais perigoso, com os regimes democráticos ameaçados e a liberdade questionada, impunha-se que, cumprindo a Constituição, fossem respeitados os direitos e deveres de todos. E estando consagrado o direito de “exprimir e divulgar livremente o seu pensamento (…), sem impedimentos nem discriminações”, estará a obrigação de cumprir nessa liberdade de expressão, aqueles que são os princípios, direitos e deveres consagrados na Constituição. 

E mais: nesse direito de “exprimir e divulgar livremente o seu pensamento (…), sem impedimentos nem discriminações”, será importante e fundamental, relatar a verdade e não, construir uma nova verdade, omitindo ou descontextualizando a realidade presente. Para isso, já bastam as mensagens virais que correm por todo o lado, conhecidas como “fake-news”.

Não basta afirmar que se é “contra a “destruição da família” tradicional” porquanto ninguém defende essa destruição. Uma frase como esta, cria nos mais incautos, sentimentos anticonstitucionais para com todas as famílias que não correspondam à “família tradicional” padronizada.

Não basta falar numa imposição de uma “ideologia de género” como “modelo de pensamento único” porquanto ninguém defende essa imposição. Uma frase como esta, cria nos mais incautos, sentimentos anticonstitucionais para com todos os que não se encaixam na “ideologia de género” padronizada.

Que necessidade existe para que, à luz do direito de “exprimir e divulgar livremente o seu pensamento (…), sem impedimentos nem discriminações”, se criem novos moralismos tentando implementar uma nova visão, uma nova verdade, sobre o mundo e a relação entre seres humanos? Ninguém tirou ou suprimiu direitos. E ninguém obrigou ou impôs o que quer que fosse. Todos são livres de usufruir ou não, dos direitos consagrados, desde que essa vontade seja de cada um e não, uma imposição legal. Todos temos o dever e o direito de votar. No entanto, mais de 30% da população portuguesa decidiu, na sua liberdade, não exercer o dever e o direito de voto.

Cada um será livre de constituir a família que desejar. Cada um será livre de se identificar com o respectivo género. Cada um será livre de usufruir ou não, do direito ao aborto ou à eutanásia. Cada um é livre na sua liberdade, respeitando o estado de direito democrático e, consequentemente, os direitos e liberdades dos outros. 

A liberdade de todos só será respeitada quando todos souberem o que é viver sem liberdade. E ninguém terá de o experienciar. Basta que, tal como escreveu Miguel Sousa Tavares: leiam!, vejam filmes!, para que depois não se arrependam por desconhecimento.

Que este novo moralismo, desarticulado da realidade que é o século XXI, que parece começar a moldar o pensamento humano e que por exemplo, reescreve livros como “Os Cinco” ou, mais recentemente, proíbe num dos estados norte-americanos, a leitura da Bíblia por ter “conteúdo pornográfico”, seja refutado por todos nós. 

Mas não é só um novo moralismo que ameaça a liberdade conquistada. É também todo um novo discurso, nomeadamente político, capaz de calar opiniões e pensamentos sobre determinadas matérias. Em pleno século XXI, democratas livres, socorrem-se da ameaça, da injúria, da coação, da insinuação, da ofensa, do insulto, para imporem as suas vontades. Como se estivéssemos em pleno Estado Novo.

George Washington escreveu um dia: “quando a liberdade de expressão nos for tirada, poderemos ser levados de seguida, como ovelhas, mudos e silenciosos, para o abate.” Lembremo-nos nestes 50 anos sobre o 25 de Abril, de todos os portugueses que lutaram, alguns com a própria vida, pela liberdade, contra a opressão e a censura.

Cultivemos e preservemos a liberdade conquistada. E não descoremos essa conquista perante populismos e extremismos que visam apenas e só, regredir direitos e liberdades, impondo uma nova moral, sustentada em lideranças que anseiam por poder. 

Que a liberdade prevaleça na salvaguarda do regime democrático. Para que todos, sem excepção, possamos dignificar e honrar, cantores, escritores, poetas, comentadores, radialistas, humoristas, apresentadores, cartoonistas, actores, jornalistas, pensadores, políticos, cidadãos anónimos,… que, sem liberdade, nos deram a todos, liberdade.

Que a liberdade, que em Portugal celebra o seu quinquagenário, prevaleça em todas as suas formas. Para que uma hipotética disciplina, não se imponha sobre o pensamento, sobre a opinião, sobre cada um.

Nas palavras de Natália Correia, “só aceito a disciplina quando me demonstram que ela é uma necessidade ética ou criadora”. Aceito por isso a disciplina ética da liberdade, nas suas variadas expressões, nomeadamente a criadora de pensamento, opinião, desenho, música, arte!

E permitam-me a mestria das palavras de Maria Teresa Horta:

Não me exijam / que diga / o que não digo
Não queiram / que escreva / o meu avesso
Não ordenem / que eu aceite / o que recuso
Não esperem / que me cale / e obedeça

Seria hoje de facto, revolucionário, “cumprir a Constituição da República, no dia-a-dia.” 

Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” (número 2 do artigo 13º. da Constituição da República).

Lutemos por isso! 





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