O QUE RAIO ACONTECEU AOS AZULEJOS?

É sabido que desde o início do século XXI, a Câmara tem vindo a recuperar património: a Capela do Espirito Santo dos Mareantes, a Casa do Bispo, a Fortaleza, a Casa da Água,… e durante estas obras de recuperação, pautou por informar os sesimbrenses sobre o andamento dos trabalhos, as vicissitudes, as soluções adoptadas,… partilhando imagens das obras e elaborando textos explicativos que davam conta do que se estava a passar em cada uma das obras. Outros tempos.

Nos últimos 5/6 anos a Câmara tem continuado a recuperar património. Mas, tudo permanece em segredo. Nada é dito, explicado ou partilhado. Os sesimbrenses terão tempo de ver a obra quando a mesma estiver concluída e inaugurada. Até lá, não têm nada que saber o que quer que seja. São exemplos desta verdade a Capela de São Sebastião: começou em segredo mas depois, lá partilharam meia dúzia de fotografias e um pequeno texto… e perante as reacções , acabaram-se as partilhas de informação e fotografias… até ao passado dia 7 de Março deste ano. E graças ao projecto “Eleito por um dia” os sesimbrenses puderam ver o varandim (digno de uma qualquer varanda de habitação social dos anos 80 do século passado) no coro alto da Capela de São Sebastião. .

O mesmo segredo pautou na obra de recuperação (??) do Aqueduto do Cabo Espichel que culminou na cerca da horta e da Casa da Água, com a construção de um pano de parede em ferro e betão, para repor a imagem original de uma fotografia que encontraram não se sabe onde nem como, nem tão pouco quem a terá validado como sendo a “imagem original”. O mistério foi de tal forma bem guardado que a inauguração decorreu em segredo, para que ninguém fizesse alguma pergunta inconveniente. Melhor explicando: a inauguração contou apenas com a presença dos “do costume com os de sempre” (diz que foi por causa da pandemia). A população, o cidadão comum, os sesimbrenses, tiveram o privilégio de ver apenas nas redes sociais, as lindas fotografias de tão grandioso evento inaugural.

Vem isto a propósito das obras de recuperação que estão a decorrer no edifício localizado na Rua Dr. Aníbal Esmeriz e recentemente classificado como «monumento de interesse municipal» (não que a Câmara reconhecesse de facto o edifício como de «interesse municipal» mas apenas porque era uma condição obrigatória do programa de financiamento EE Grants).

O que raio aconteceu aos azulejos que forravam as fachadas do edifício classificado como «monumento de interesse municipal» localizado na Rua Dr. Aníbal Esmeriz? As centenas de azulejos do século XIX, pintados à mão (repito: PINTADOS À MÃO), foram todos arrancados! 

Diz a deliberação de Câmara (LINK) que a intenção de classificar o edifício como «monumento de interesse municipal» resultava também na “intenção de promover a reabilitação integral do edifício”. Então e para “promover a reabilitação integral do edifício” é necessário retirar das fachadas centenas de azulejos pintados à mão, com mais de 150 anos? Fantástico. Absolutamente fantástico.

Permitam-me referir o Arqtº. José Aguiar, relativamente ao “tratamento de azulejos em obras de reabilitação”:

(…) 

Não é possível assegurar a adequada conservação ou manutenção dos azulejos, antes ou depois do restauro, se não se garantir o adequado estado de conservação do edifício, nomeadamente no que se refere: (i) à consolidação e equilíbrio estático da estrutura; (ii) ao bom estado de funcionamento do sistema de condução de águas (geometria da cobertura e estado do seu revestimento); (iii) ao eficiente estado de conservação dos algerozes e tubos de queda; (iv) à existência de uma adequada rede de drenagem de águas pluviais; (v) à resolução de anomalias provocadas por possíveis humidades ascensionais nas paredes (…).

Por vezes é necessário proceder ao restauro de azulejos fora do seu suporte original, importa no entanto restringir esta prática à sua absoluta necessidade pois aproximadamente 20% dos azulejos partem-se ou danificam-se quando são retirados.

O levantamento dos azulejos, (…) é a última solução para garantir a sua preservação. 

No caso de se partir algum azulejo dever-se-á embrulhá-lo imediatamente num jornal e colocá-lo num pequeno saco plástico identificado com uma etiqueta com a respectiva cota o que permitirá o seu restauro ou colagem.

(…)”

E também uma tese de doutoramento (Universidade de Évora) relativa à “conservação e restauro de azulejo: metodologias de intervenção (…)”:

(…)

Qualquer intervenção no monumento deve ter em consideração as características específicas dos revestimentos azulejares, bem como os limites da sua salvaguarda. Intervenções como a consolidação, limpeza ou reintegração, devem ser efetuadas ao nível mínimo necessário, para evitar qualquer redução de autenticidade material e pictórica.

O envelhecimento natural é um testemunho do tempo e deve ser respeitado.

O levantamento de azulejos do seu suporte arquitetónico original deve ser evitado e apenas realizado quando se encontram esgotadas todas as alternativas à sua realização, devendo ser efetuado apenas por questões de conservação. Pode justificar-se o levantamento pontual sempre que a leitura estética e formal do painel seja assim beneficiada, desde que seja levada a cabo uma consistente avaliação preliminar da sua exequibilidade e que não recaiam quaisquer danos sobre os azulejos originais.

(…)”

O que raio aconteceu aos azulejos que forravam as fachadas do edifício classificado como «monumento de interesse municipal» localizado na Rua Dr. Aníbal Esmeriz? As centenas de azulejos do século XIX, pintados à mão (repito: PINTADOS À MÃO), foram todos arrancados! Porquê? Qual é o argumento?, a justificação?

Onde estão as centenas de azulejos que foram arrancados? Quantos se partiram? 

Nos documentos relativos à candidatura do edifício da Rua Dr. Aníbal Esmeriz ao programa EE Grants (LINK) consta o “cronograma e orçamento” das obras a realizar. Na página 2, surge o item “Trabalhos de construção civil e outros trabalhos de engenharia” com um montante superior a 1 milhão de euros. Imediatamente a seguir, o item relativo a “Trabalhos de Conservação e Restauro” não tem atribuído um único cêntimo. Significa portanto que, a obra financiada pelo EE Grants, não contempla qualquer trabalho de conservação e restauro? Estarão os trabalhos de conservação e restauro dentro do item “Trabalhos de construção civil e outros trabalhos de engenharia”? Será a conservação e restauro de azulejos, uma obra de construção civil ou de engenharia?

E eu que não percebo nada de nada trabalhos de construção civil, nem de trabalhos de engenharia, nem de trabalhos de conservação e restauro, nem tão pouco de azulejos, parece-me que foi tudo misturado dentro do mesmo saco! Porque uma coisa serão as necessárias obras de construção civil e engenharia que visam (entre outras) consolidar a estrutura do edifício, resolver as questões relacionadas com as águas pluviais, possíveis infiltrações e humidades. Coisa bem diferente será a conservação e restauro dos azulejos de fachada (tal como das cantarias e elementos em ferro).

Diz o LNEC, relativamente à conservação e restauro de azulejos (num estudo que realizou sobre a degradação física dos azulejos de fachada):

(…) A conservação dos azulejos que paramentam as fachadas (…) requer suportes secos e as intervenções, quer de conservação, quer preventivas, devem ter como primeiro objectivo a determinação das fontes de humidificação, existentes ou potenciais, e a sua eliminação ou controle antes que a degradação prossiga até ao inevitável desfecho. (...)

E um estudo desenvolvido em parceria com a Universidade de Aveiro (no âmbito do Projeto SOS Azulejo):

“(…) A conservação e restauro do património antigo deve seguir princípios éticos, assegurando a compatibilidade, reversibilidade e autenticidade (…). De acordo com a Carta de Veneza e outras mais recentes como a Carta de Cracóvia, bem como outros critérios de intervenção na atividade da UNESCO, é da responsabilidade coletiva proteger e gerir o património antigo e comum, mantendo a sua riqueza e autenticidade (…)”.

O que é que levou ao arrancar de centenas de azulejos? O que sustentou essa decisão? Onde estão encaixotados os azulejos? Quantos se partiram? 

Com toda a certeza que este post é completamente despropositado porque, como é óbvio, esta ideia peregrina de arrancar os azulejos todos, estará consubstanciada em relatórios técnicos decorrentes de exames efectuados às fachadas e que determinaram a presença de um sem número de situações (como óxidos de ferro, líquenes e micro-organismos) o que tornou inevitável arrancar tudo (para que as paredes fossem tratadas e reabilitadas), sabendo-se que cerca de 20% dos azulejos ficaram danificados e/ou partidos. E estará garantida, como é óbvio, a recolocação de todos os azulejos retirados (que estarão cuidadosamente guardados e serão objecto de limpeza e reparação) e das necessárias réplicas (iguais e pintadas à mão e, devidamente testadas nomeadamente em relação à absorção de água por capilaridade). Não há que haver qualquer tipo de preocupação. Está tudo assegurado. Com toda a certeza que os azulejos arrancados já estão guardados ao pé dos móveis da Mercearia. E os 20% que se terão partido até já devem estar a ser reparados para que sejam recolocados no sítio original. 

Permitam-me terminar com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE): quando estiver prevista “a remoção de azulejos de fachada, independentemente da sua confrontação com a via pública ou logradouros” (excerto da alínea c) do número 2 do artigo 24º), o projecto é indeferido. Ou seja, se alguém apresentar um projecto de recuperação de um edifício forrado de azulejos, tem de os preservar. Melhor explicando: se alguém apresentar um projecto de recuperação que prevê a remoção dos azulejos de fachada, a Câmara indefere. Dizendo de outra maneira: se esta obra fosse promovida por um particular, a Câmara jamais a aprovaria.

A menos que, e “em casos devidamente justificados, autorizados pela Câmara Municipal em razão da ausência ou diminuto valor patrimonial relevante destes” (continuação da alínea c) do número 2 do artigo 24º). O que não é o caso. O edifício da Rua Dr. Aníbal Esmeriz, classificado como «monumento de interesse municipal», era revestido por centenas de azulejos, pintados à mão, com mais de 150 anos. Pontualmente, apresentava alguns espaços vazios, sem azulejos. E para esses casos, apenas para esses casos, seriam produzidas réplicas dos azulejos originais que colmatariam os espaços vazios existentes evitando-se “qualquer redução de autenticidade material e pictórica”. Eram esses azulejos originais, pintados à mão, com mais de 150 anos, que tornavam o edifício exemplar e com valor patrimonial.

Mas como já referi – e apesar de já terem sido recuperados/reabilitados (por particulares) dezenas de edifícios revestidos com azulejos que foram mantidos/restaurados/preservados no local (nomeadamente em Sesimbra) – não percebo nada de nada de reabilitações integrais de edifícios, nem tão pouco de azulejos pintados à mão, com mais de 150 anos, pelo que será perfeitamente normal esta ideia peregrina de arrancar centenas de azulejos tendo em vista “promover a reabilitação integral do edifício”. A menos que a ideia tenha sido a de retirar os azulejos velhos e baços (e com valor patrimonial) e colocar novos, mais bonitos e brilhantes (réplicas sem valor e desprovidas de autenticidade). Valha-nos Deus!

Pergunto-me quanto custará esta brincadeira de andar a arrancar centenas de azulejos há mais de um mês, etiquetá-los, armazená-los, limpá-los, recuperá-los, para depois, voltar a colocá-los. A menos que tenham ido direitinhos para o lixo e assim, o custo da brincadeira anulará a tarefa de etiquetar, armazenar, limpar e recuperar. Nem sei que diga.

Se esta obra fosse promovida por um particular, a Câmara jamais a aprovaria (e bem). O que raio aconteceu aos azulejos? Ninguém tem nada que saber! Esperem pela conclusão da obra, pela inauguração, e pelas lindas fotografias que serão partilhadas nas redes sociais! E claro, como é apanágio, pela CDU de Sesimbra, reclamando mais esta obra como sua!



Comentários

Mensagens populares