PARA QUANDO O REGRESSO DAS LOUSAS E DOS LÁPIS DE GIZ?

A internet. Para quem viveu num mundo sem internet, viver sem internet nos dias de hoje parece um cenário impossível. O mundo tornou-se internetdependente e não consegue existir sem a informação que corre a alta velocidade através de fibra óptica e que permite contactar, partilhar, pesquisar o que quer que seja em segundos. Confesso que a velocidade em que se partilha uma imagem ou um texto, por vezes, ainda me surpreende. Ficámos mais ligados, mais rápidos, mais informados, mais conectados.

E o cidadão comum, através de um clic, consegue aceder a páginas de informação, desinformação, especulação,… Mas também, a páginas institucionais que permitem um sem número de operações sem a necessidade de uma deslocação física e presencial.

E hoje, através da internet, é possível renovar a carta de condução; alterar e actualizar os dados nas finanças; entregar o IRS; consultar e actualizar dados na Segurança Social; fazer transferências bancárias; consultar saldos; consultar/alterar/actualizar dados com operadoras de serviços; comprar o que quer que seja, onde quer que seja;…

É possível acompanhar debates on-line em qualquer parte do mundo. É possível consultar qualquer documento público de qualquer entidade do planeta. É possível acompanhar as notícias internacionais. É possível participar, enquanto cidadão comum, em mil e uma iniciativas. 

É possível opinar em assuntos discutidos na ONU. É possível opinar em assuntos debatidos pela União Europeia. É possível opinar sobre documentos (que serão leis nacionais) da Assembleia da República. É possível opinar sobre tudo e mais alguma coisa que está em consulta pública no país e no mundo. E até é possível opinar sobre as descobertas da NASA e o infinito universo que desconhecemos.

Foquemo-nos em Portugal: ao cidadão comum, basta um clic para aceder e participar em qualquer consulta pública que se encontre a decorrer no território nacional. E se, por um acaso, um cidadão comum do Algarve, tiver vontade e interesse em participar numa consulta pública sobre um qualquer assunto em Trás-os-Montes, pode fazê-lo através de um clic. Não precisa de se deslocar fisicamente a Trás-os-Montes. Isso era antigamente, no século passado. Quando não havia túnel e se demorava um dia nas voltinhas do Marão.

Nos dias de hoje, basta aceder a um qualquer link e remeter a sua opinião, que será analisada, considerada e respondida pela respectiva entidade que promoveu a consulta pública. Tudo através, apenas e só, da internet. Esse “admirável mundo novo” como antecipou em 1932 Aldous Huxley (com todas as suas virtudes e defeitos).

Vem isto a propósito da recente notícia (LINK) publicada pela Autarquia de Sesimbra alertando que está aberta a consulta pública sobre o “Regulamento de Benefícios Fiscais do Município de Sesimbra”, pelo prazo de 30 dias (tendo a mesma iniciado a 10 de Outubro). 

E em pleno século XXI, com internet por todo o lado, como é que o cidadão comum pode participar nesta consulta pública? Pasme-se:

  • As opiniões dos cidadãos comuns (sesimbrenses ou não) devem ser apresentadas presencialmente (sublinho e em maiúsculas a palavra “PRESENCIALMENTE”). Nem sei que diga.

Mas há mais: para essa apresentação “presencialmente” no Balcão Único de Serviços, os cidadãos comuns (sesimbrenses ou não) devem cumprir (pasme-se) o seguinte horário: 

  • todos os dias úteis  entre as 8 horas e as 19 horas ou;
  • aos sábados, das 8:30 horas às 13 horas .

(E permitam-me uma consideração: imaginem que existe um cidadão comum em Trás-os-Montes que quer participar nesta consulta pública; se a ideia for a de promover a economia local, obrigando os transmontanos a terem de fazer uma viagem até Sesimbra, almoçar e até, quiçá, pernoitar, para poderem estar presencialmente, no horário definido, no Balcão Único de Serviços, é de se lhe tirar o chapéu!)

Mas antecipando (provavelmente), que alguns cidadãos comuns não conseguirão estar presencialmente e dentro do horário definido, no Balcão Único de Serviços, a notícia define a alternativa, para que todos possam participar (se assim o desejarem). Pasme-se:

  • As opiniões dos cidadãos comuns (sesimbrenses ou não) podem também ser apresentadas por via postal, à antiga: escreve uma carta, mete num envelope, vai aos correios e envia para a Câmara Municipal ao cuidado do Sr. Presidente. E pelo sim pelo não (digo eu) o melhor é fazê-lo com aviso de recepção.

E dado que a noticia não especifica de que forma deve ser redigida a carta, as dúvidas que me assaltam:

  • Na entrega “presencialmente”, deve o cidadão comum vir já munido da sua opinião, manuscrita num qualquer papel ou, terá de preencher um qualquer requerimento tipo que lhe será facultado nesse momento?
  • E se a entrega for por via postal, (e tratando-se de um método antigo, num qualquer revivalismo dos anos 80 do século passado), a carta terá de ser manuscrita em papel azul de 25 linhas timbrado? 
  • Ou poderá a carta ser redigida em computador e depois impressa numa folha de papel reciclado A4? E se assim for, existe alguma norma relativamente ao tipo e tamanho de letra a utilizar e ao número máximo de caracteres?

Em todo o mundo, repito, em todo o mundo (e até para a estação espacial), um qualquer cidadão comum pode, se assim entender, participar no que quiser, quando quiser, às horas que quiser, sem sair de casa. 

Em Sesimbra não. Em Sesimbra é à antiga: o cidadão comum entrega a sua opinião, presencialmente dentro do horário definido. E ponto final. E se não conseguir estar presencialmente dentro do horário definido, no Balcão Único de Serviços, vai ao posto de correios e envia uma carta ao Sr. Presidente. E mais nada. Não há cá links nem endereços electrónicos para ninguém!

Nem sei que diga. 

Num mundo tecnológico em que a maioria do executivo eleito pouco se lembrará do que era a vida sem internet, sinceramente, não percebo o alcance desta medida. 

Ou melhor, até percebo se a ideia for a de promover uma consulta pública (obrigatória por lei) fechada, despercebida e recatada, que se espera não tenha qualquer tipo de participação, para não atrasar o procedimento com a análise das participações, a execução de relatórios, a emissão de respostas a quem participou, a justificação sobre porque é que a opinião não foi, ou foi, considerada,…. 

Porque se a ideia fosse a de promover uma consulta pública (obrigatória por lei) aberta, alargada e disponível para receber opiniões e sugestões dos cidadãos comuns (sesimbrenses ou não), a consulta pública estaria escarrapachada em letras garrafais na página oficial da Autarquia, com um link qualquer ou um endereço electrónico para todos os que quisessem opinar, no dia que quisessem, à hora que quisessem e de onde quisessem!

Assim, é provável que as participações sejam poucas ou nenhumas. Afinal, foi o povo sesimbrense que elegeu o executivo em funções e depositou neles a missão de gerir o território, os impostos e os benefícios fiscais que incidem sobre todos nós. E ficámos a saber que o executivo trabalhou muito sobre o assunto, atingindo consensos e produzindo um documento consensual que até já foi reclamado quer pela CDU quer pelo PS.

E até me atrevo a reutilizar uma frase mítica do mandato anterior: “a opinião do cidadão comum, vale o que vale”. E nesta matéria concreta, depois do trabalho realizado e aprovado unanimemente (e quase aclamação) em reunião de Câmara, o que raio sabe ou percebe o cidadão comum sobre benefícios fiscais, IMIs e IMTs, para vir opinar e fazer sugestões? 

Valha-nos Deus. Para quando o regresso das lousas e dos lápis de giz?

FONTE DA IMAGEM: dnoticias.pt

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