“AINDA HÁ TRAINEIRAS E GAIVOTAS?”
As palavras que dão título a este texto, não são minhas. Trata-se da última frase de um poema de António Telmo (“Almada Negreiros”) e vem a propósito do centenário de Rafael Monteiro, dado que o mesmo se inicia com a pergunta: “Lembras-te Rafael (…)?”
E a pergunta referia-se ao facto de, numa visita a Almada Negreiros, Rafael Monteiro ter referido que Sesimbra estava muito mudada “porque o turismo a vinha continuamente estragando.” Almada Negreiros respondeu: “A beleza de Sesimbra, meu Amigo, nem uma bomba atómica seria capaz de destruir.” (ALMADA NEGREIROS E SESIMBRA).
Neste poema, António Telmo confirma:
“Nenhuma bomba com efeito
Pode destruir Sesimbra
Enquanto imagem da alma dos deuses
E da nossa.
Entretanto, deixemo-la apenas para os turistas
Que gostam de olhar as gaivotas
Chiando sobre as traineiras.”
E termina com a pergunta que utilizei como titulo: “Ainda há traineiras e gaivotas?”
Sim, ainda há traineiras e gaivotas. Menos traineiras e muitas gaivotas (não sei se mais se menos). Tenho uma ideia vaga de Rafael Monteiro. Lembro-me de vê-lo em Sesimbra, com as suas barbas brancas e vestes pretas. Amava Sesimbra e tentava protegê-la daquilo que considerava serem ataques à sua essência, à sua beleza, àquela que era “a imagem da alma dos deuses.” Num comentário recente, João Augusto Aldeia contou que numa ocasião em que Rafael Monteiro se manifestou contra a construção de um edifício na “sua Sesimbra”, o arquitecto da Câmara acompanhado pelo Presidente, agrediram-no fisicamente. Outros tempos, direi eu.
António Telmo dedicou alguns textos a Rafael Monteiro, descrevendo-o como o “castelão autodidacta” com “o temperamento de um felino.” E conta-nos algumas histórias surpreendentes como a visita que recebeu de José Cardoso Pires. Ou o convite de Marcelo Caetano para que ingressasse a Faculdade de Direito e fosse seu aluno (episódio que foi relatado por António Reis Marques no jornal “O Sesimbrense”). Marcelo Caetano ter-lhe-á dito: “Você já é alguém, mas eu gostava que fosse alguém ainda maior pois tem qualidades para isso.” Rafael Monteiro era um autodidacta apenas com a 4ª. classe, o que seria impeditivo de ingressar na Universidade. Marcelo Caetano terá ficado estupefacto.
A mim, o que me impressiona de facto é a conclusão de António Telmo sobre este episódio: “O Rafael Monteiro, com a sua instrução primária, teve mais sorte do que o Fernando Pessoa, nem sequer se lhe pôs o problema de ter que desaprender tudo quanto lhe haveriam de ensinar na Universidade.”
Sendo um autodidacta, aprendeu com o que leu, com o que interpretou, com o que decifrou. Há uns anos alguém questionava numa reunião o então Presidente se ele sabia falar de tudo; tinha sempre perguntas para fazer; tinha sempre uma opinião sobre todas as matérias. E a resposta não se fez esperar: “Sei ler, sei interpretar o que leio, sei fazer perguntas e sei formular uma opinião; e se existirem opiniões discordantes da minha, só terão de mostrar que a minha está errada.” E não poderia ter sido uma melhor resposta. De quem: do Presidente Augusto Pólvora. Também ele um autodidacta em tantas e tantas matérias.
O ser humano é dotado de pensamento, de raciocínio, de inteligência. E esse pensamento, raciocínio e inteligência não são consequência desta ou daquela formação. Veja-se no caso, Rafael Monteiro (e mais uma vez, socorro-me das palavras de António Telmo): “lia, escrevia, pensava, recebia os que eram capazes de o compreender e, excepcionalmente, de o ensinar.”
Dos vários textos de António Telmo, há um que considero ser de uma amplitude e de uma visão sobre o ser humano absolutamente extraordinária. É um texto que seria a apresentação para uma publicação cultural dedicada a Sesimbra (e não concretizada) e que transcrevo parcialmente:
“Em Portugal cada um de nós é um Mestre e o crer-se Mestre, no ofício, na profissão, no negócio e em tudo o mais, cresce sempre na razão inversa da sua autêntica sabedoria. Daqui o culto que prestamos aos catedráticos, aos que exibem livros como outros exibem automóveis, aos que disfarçam num pomposo título universitário ou num mais modesto diploma de formação a sua incapacidade de ver, de investigar e, portanto, de perguntar constantemente. É uma banalidade que sempre se esquece: a de que a inteligência se mede muito mais pelas «perguntas» que se fazem do que pelas «respostas» que se dão.
Mas se na auto-suficiência de quem funciona como mestre não há nem pode haver a fecunda expectativa da pergunta, o entusiasmo da hipótese, a certeira aventura da investigação, existe sim a terrível, fria, atenção aos erros dos outros, aos «erros» (de errar, vagabundear, procurar) que todos necessariamente vamos tendo numa vida que queiramos ou não é sempre viagem, embora quase sempre de rotina depois de se ter ido à Índia, e assim em cada mestre há um crítico, o que corresponde zoologicamente à girafa, com um pescoço muito comprido a separar a cabeça do corpo e dos seus instintos, emoções, sentimentos, e uma boca de roedor que vai mastigando todas as plantas que vivem no alto, ali onde só deviam chegar pássaros e abelhas.
Triste é ter que dizê-lo: em cada português vivem de mãos dadas um mestre e um crítico. Daqui a dificuldade de um suplemento de cultura como este. Ele só serviria para os que infelizmente não sabem ler. Mas resta a esperança de que nos que sabem ler, esteja aquele que sabe e não sabe ao mesmo tempo, isto é aquele que em cada novo conhecimento adquirido sinta não uma cadeira ou cátedra em que se possa sentar definitivamente, mas uma nova forma de interrogação, o que esperamos se encontre numa terra em que o constante vai-vem do mar corrói todas as arestas definidas e destrói todos os frágeis portos dos homens.”
Estas palavras revelariam a esperança de que em Sesimbra se encontrassem gentes livres, sem o pensamento toldado por certezas e verdades absolutas mas cheio de dúvidas e interrogações. E também todos aqueles que, tal como Rafael Monteiro, não tivessem “o problema de ter que desaprender tudo quanto lhe haveriam de ensinar na Universidade.” Porque no mar, tal como na vida, existem poucas certezas e verdades absolutas. E o povo sesimbrense, os pescadores, sabem-no bem.
“Ainda há traineiras e gaivotas?” Sim, ainda há traineiras e gaivotas. Menos traineiras e muitas gaivotas (não sei se mais se menos). E serão os sesimbrenses o garante desta existência. Desta baía, deste mar infinito, deste lugar paradisíaco. Serão os sesimbrenses o garante de Sesimbra, da sua alma genuína e única. Serão os sesimbrenses o garante da sua essência, da sua beleza, daquela que é a “a imagem da alma dos deuses.”
Quanto a Rafael Monteiro, termino com palavras de Fernando Pessoa:
“Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se o quisesse, medir o valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. E aquela frase de que «homem de génio desconhecido» é o mais belo de todos os destinos torna-se-me inegável; parece-me que esse é não só o mais belo, mas o maior dos destinos.”
E tal como Fernando Pessoa (célebre sem o querer ter sido), talvez se Rafael Monteiro tivesse nascido, vivido e morrido numa outra vila, numa outra cidade, o «homem de génio desconhecido» tivesse ganho alguma celebridade.
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