"O POVO É QUEM MAIS ORDENA"?
Há 47 anos, o Movimento das Forças Armadas saía à rua derrubando a ditadura e devolvendo aos portugueses a liberdade. Dois anos depois, era aprovada a Constituição da República Portuguesa e logo no seu Artigo 2º, estabelecia que: “a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”
E a força destas palavras deste Artigo 2º. serão provavelmente ignoradas por todos aqueles que não viveram na ditadura. Por todos aqueles que não conheceram portugueses que sentiram na pele, a ditadura. Por todos aqueles que nunca ouviram e leram nada sobre o assunto e que, nasceram na liberdade conquistada. Nessa liberdade que assegurou (entre outros) o direito de “exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.” Consagrando que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.”
São 68 os artigos que integram a PARTE I relativa aos: “Direitos e deveres fundamentais” do povo português e que merecem em pleno século XXI, uma leitura atenta e aprofundada. Para que a liberdade não se perca em movimentos extremistas ou em poderes absolutos deste ou daquele poder instituído.
"O povo é quem mais ordena"! E esta frase cantada parece perder força para todas as gerações pós 25 de Abril. Na dificuldade de assimilar o significado da palavra “povo”, nessa igualdade do povo perante um povo que não fará parte do outro povo. Porque há um povo que defende o outro povo mas que não pertence a esse mesmo povo. Confuso? Bastante. Sem povo, acabaria a necessidade de lutar pelos direitos do povo, porquanto não existiria povo. Mas “povo”, somos todos nós: ricos, pobres e remediados. Políticos, deputados e ministros. Patrões e trabalhadores. Empregados e desempregados. Estudantes, famílias e idosos. E quais são os direitos do povo perante a luta ambicionada de igualdade? Igualdade entre que povo? Aquele ao qual julgamos pertencer? Ou o outro povo, que pode estar acima ou abaixo do nosso povo?
Se imaginarmos que aqueles que viveram Abril terão mais de 60 anos e que os mais novos, cresceram com as canções, com os cravos, com as comemorações, com o feriado, com os fogos de artificio, com as manifestações, com os comícios, com os discursos políticos,… numa imagem que parece transparecer a ideia de uma revolução liderada por um partido e não, por um movimento armado e apoiado pelo povo que saiu à rua, agradecendo, vibrando, chorando, rindo, pela liberdade reconquistada, o dia da Liberdade correrá o risco de se esfumar no decorrer dos tempos, porquanto já não haverá ninguém que sinta o valor da conquista da liberdade. Dessa liberdade que temos como adquirida e inviolável.
Porque "o povo é quem mais ordena"! Num estado de direito democrático, baseado na soberania popular e visando a realização e aprofundamento de uma democracia participativa.
E este estado de direito democrático (conforme referi no post PALAVRAS), tem por base a soberania popular. Soberania significa poder supremo ou autoridade de soberano. Mas sendo popular, significa que essa soberania pertence ao povo e não, a um qualquer soberano, a um qualquer chefe supremo, a um qualquer muito poderoso, dominador, altivo e arrogante. O poder é do povo (que somos todos nós). Lembrai-vos desta verdade quando cantais “o povo é quem mais ordena.” E o povo, sendo soberano, propõe-se realizar e aprofundar uma democracia participativa. E não uma democracia representativa.
Quer isto dizer que o povo, sendo quem mais ordena, para além de eleger os seus representantes (a cada voto eleitoral) tem consagrado na Constituição da República Portuguesa que, o estado de direito democrático é consolidado através de uma democracia participativa. Ou seja, é assegurada a participação do povo (que é o soberano) não apenas no exercício do direito de voto mas, acima de tudo, na tomada de decisões por parte daqueles que elege como seus representantes. Explicando melhor: alguém nomeia um representante para interagir em determinada matéria. Compete ao representante informar o representado sobre aquilo que possa estar a ser delineado, antes de uma tomada de decisão. Porque, o soberano, será o representado e não o representante.
E são os 68 artigos relativos aos “Direitos e deveres fundamentais” do povo português, o garante de que a liberdade é igual para todos, no respeito pelo estado de direito democrático. Para que nenhum representante eleito se torne num soberano. Ou para que nenhum poder seja exercido com soberba.
Num texto que li recentemente e relativamente ao conceito de democracia participativa (consagrada na Constituição da República Portuguesa), explanava a ideia de que existe dificuldade em partilhar poder. Em especial por parte dos eleitos em cada acto eleitoral, enfatizando nomeadamente os decisores autárquicos. Era afirmado que a democracia participativa implica uma “posição que tende a nivelar o poder entre quem decide e os cidadãos, posição da qual a maioria dos decisores não está disposta a abdicar.”
E 47 anos depois do Movimento das Forças Armadas ter saído à rua para derrubar a ditadura e devolver ao povo a liberdade, parece que o povo “adormeceu” nos seus direitos e deveres. Parece até manipulável, perante as opiniões deste ou daquele partido ou movimento, como se fosse desprovido de pensamento próprio e analítico, necessitando de seguir uma qualquer forma de expressão mais nacionalista, mais reaccionária, mais extremista, mais política, mais contra isto ou contra aquilo, muitas vezes sustentada em teorias de conspiração e verdades absolutas que não passam da manipulação de palavras e frases (talvez o exemplo mais mediático tenha sido Trump ou, mais recentemente, a pandemia e o uso das máscaras e as vacinas).
O povo indigna-se com coisas menores e maiores. E sobre muitas coisas, a indignação é difícil de perceber. Porque o povo é o mesmo. O país é o mesmo. Só mudam os actores. O artigo de opinião de Daniel Oliveira questionava o “nobre povo”, aquele “povo que justamente se indigna com Sócrates” mas que “vota uma e outra vez em Isaltino”. Porque “Isaltino pode ser o que sempre foi enquanto Oeiras prosperar.” E se a bancarrota e a Troika não tivessem ocorrido com o governo Sócrates? Estaria ele sujeito a algum tipo de processo judicial?, ou a algum tipo de manifestação pública contra ou a favor? Talvez até reunisse consensos para ser candidato a Presidente da República? (cenário, digo eu, que ainda estará no seu horizonte).
Mas também é verdade que na maioria das vezes o povo nem sequer se indigna. Porque não vale a pena. Porque o sistema é assim. Porque não há nada a fazer. Porque… E este ‘deixa-andar’ destrói a democracia e anula a liberdade, transformando-a apenas numa ilusão. Naquela ilusão que tínhamos de liberdade e de direitos e que a pandemia anulou. O povo quer sair, viajar, ir para centros comerciais e esplanadas. Quer festas e festivais. Quer andar por todo o lado a qualquer hora e em qualquer lugar. Que ninguém nos tire essa liberdade e esses direitos! E onde ficam todas as outras liberdades e direitos? Aquela(e)s que são o garante do nosso bem-estar e da nossa vida? Não são palpáveis e por isso, ficam esquecida(o)s, adormecida(o)s.
Dizem que a democracia está a ruir. O conceito democrático já não satisfaz. E eu acrescento: "o povo é quem mais ordena". E em pleno século XXI, o direito à indignação, à opinião, ao questionar, ao participar na vida pública da comunidade onde nos inserimos, não pode estar anulada por “medo de represálias”. Porque “eles” são vingativos.
"O povo é quem mais ordena"! E não é apenas com “likes” e partilhas nas redes sociais. Com reacções de espanto ou indignação. O povo ordena sendo participativo na vida pública. Exigindo os direitos consagrados, nomeadamente na Constituição da República Portuguesa. E a cada voto eleitoral, votar. Votar em massa. Na minha terra a abstenção ganha a cada eleição autárquica. Pergunto-me: se a maioria votasse, os resultados seriam iguais?
Gritemos neste dia da Liberdade: "o povo é quem mais ordena"! Porque o povo do século XXI não é analfabeto nem iletrado. O povo do século XXI é tecnológico, participativo e exige fazer parte efectiva da democracia participativa. O poder é do povo, do tão apregoado povo que só é considerado nas campanhas eleitorais. Depois, o poder é exercido à porta fechada e implementado como “surpresa!” numa soberba incompreensível, afirmando surpreendentemente e sobre um projecto especifico que, apesar da opinião pública, o projecto não irá ser revisto!!!
A opinião pública é do povo que vota. Livre e democraticamente. Num representante que não é nem nunca será, o soberano. Os eleitos são apenas os representantes do representado. E têm de prestar contas enquanto representantes dos órgãos municipais e não, enquanto militantes de uma qualquer força partidária. "O povo é quem mais ordena"! Que interiorizem esta frase quando a gritarem a plenos pulmões! Perdoem-me o tom.
"Em cada rosto igualdade". Sem juízos de valor. Sem referências partidárias. Sem amizades ou conhecimentos pessoais. Sem rótulos disto ou daquilo. Sem necessidade de ser militante ou simpatizante do partido que julga reinar. Portugal não é um reino nem tem um soberano.
Portugal é, há 47 anos, uma democracia participativa e livre! Lutemos pela construção efectiva de “um país mais livre, mais justo e mais fraterno.”
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