E PORQUE NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS, CABO ESPICHEL OUTRA VEZ - SESIMBRA
“Cabo Espichel vai ter Eco-Hotel”. Título de uma notícia publicada no jornal da região “Sem Mais”. E pode ler-se que “vai contar com 58 unidades de alojamento e diversos serviços (restaurante, piscina e SPA) para além de uma área dedicada à agricultura biológica”. Diz tratar-se do ETOSOTO, “um projecto ecológico que contempla uma área de alojamento integrado no ambiente protegido do Cabo Espichel, em pleno Parque Natural da Serra da Arrábida”.
Confesso que, na altura em que esteve em consulta pública o projecto do ETOSOTO, passei os olhos pelos documentos disponibilizados no site PARTICIPA (e que continuam acessíveis), com relatórios, desenhos, imagens e até, pareceres das entidades consultadas.
Hoje, voltei a reler alguns elementos do ETOSOTO disponíveis no referido site PARTICIPA.
Não tenho rigorosamente nada contra o investimento privado, nomeadamente na construção de modelos sustentáveis, com preocupações ecológicas e ambientais, privilegiando e utilizando matérias naturais (carbono zero), promovendo a implementação dos conhecidos N-ZEB, em respeito pela paisagem, valores naturais e instrumentos de ordenamento do território.
São as entidades competentes sobre a matéria que emitem pareceres vinculativos sobre este tipo de intervenções, sendo que os mesmos são produzidos por técnicos habilitados que constituem os seus quadros e em conformidade com os regulamentos e planos de ordenamento do território.
E assim, numa consulta simples no Google, pesquisei: resultado da avaliação de impacto ambiental eco-hotel ETOSOTO. E na quarta posição surgiu a chamada DIA (decisão da CCDR sobre o assunto) disponibilizando a mesma em formato pdf.
São 9 páginas de parecer, descrevendo o projecto, os pareceres emitidos por um conjunto de entidades com competência sobre a matéria e, as participações públicas sobre o assunto (num total de 9, sendo que 5 são desfavoráveis ao projecto; 2 apresentam sugestões; 1 é favorável; a última, é uma reclamação).
A decisão foi tomada a 6.Fevereiro.2020 e, transmitida ao promotor a 10.Fevereiro.2020. E a decisão é: FAVORÁVEL CONDICIONADA. E de seguida enumera as condicionantes que o projecto terá de cumprir para que venha a ser licenciado e construído (4 páginas). Sendo que a decisão caduca se, decorridos 4 anos daquela data (6.Fev.2020) o promotor não der inicio à execução do projecto.
Não vou enumerar o conjunto de condicionantes. Apenas referir que a primeira condicionante (e que irá alterar a maioria das peças desenhadas apresentadas) refere-se à relocalização de 10 das edificações propostas, assim como do estacionamento para bicicletas e dos novos caminhos.
As edificações a relocalizar, porque estão inseridas num “habitat prioritário” de “dunas fixas com tojais” são: o salão de estar, o restaurante, 2 SPA, 2 alojamentos para funcionários, a sala de conferências, 2 piscinas, a recepção e manutenção.
E concordando-se ou não, com a implementação de 58 unidades de alojamento (a que correspondem 116 camas), SPA, Restaurante, Alojamentos de Funcionários, Salão de Estar, Recepção e Manutenção, Sala de Música e Artes, Salão de Conferências, Posto de Informação, Sala Técnica do Parque Solar, abertura de caminhos, construção de estacionamentos, Edifício de Apoio Agrícola, Instalações de Apoio aos Funcionários Agrícolas,… o plano de ordenamento do território prevê essa possibilidade construtiva.
O PDM de Sesimbra oferece a possibilidade construtiva num conjunto de espaços que, não sendo urbanos, e desde que respeitem um conjunto de factores, podem construir um empreendimento turístico.
A verdade é que o PDM de Sesimbra, publicado em 1998, está completamente obsoleto face às mudanças radicais na maneira de ordenar o território, respeitando valores naturais e ambientais. Em pleno século XXI, não se percebem algumas situações que vão acontecendo por aqui e por ali, aparentemente contra todas as mensagens ecológicas e de sustentabilidade. Talvez por isso, o PDM de Sesimbra esteja em Revisão desde Janeiro de 2007. E talvez também por isso, a Revisão ainda não esteja concluída… isto dava pano para mangas. Talvez num outro dia 😉
E ao promotor privado, coube-lhe investir numa oportunidade de negócio, respeitando o PDM de Sesimbra e ambicionando a construção de um hotel. De um eco-hotel.
A mim, o que me provoca indignação é o princípio de base. Ou seja, alguém compra uma propriedade com um conjunto de construções ilegais (e que, é do conhecimento comum, são a demolir, não se percebendo porque é que ao fim destes anos todos, ainda continuam de pé). O novo proprietário decide recuperar uma das construções ilegais e promovê-la como imagem do seu novo hotel.
Para mim, a lei é igual para todos. Sejam portugueses ou não. E não conheço (e assumo a minha ignorância) alguém que tenha comprado um terreno com uma construção ilegal e devoluta e, ignorando por completo a lei, procedeu à sua reconstrução, dotando-a de todas as condições de habitabilidade. Diz a lei que, primeiro apresenta o projecto, depois e se merecer aprovação, levanta a licença de construção e, no fim da obra e se tudo correr bem, terá a licença de utilização.
E esta construção ilegal e reconstruída, dizem os pareceres (site PARTICIPA) é para demolir porque está dentro do PNA, numa área classificada como PPII e como tal, non aedificanti. Mas é com esta construção que a promoção é feita (e são várias as imagens partilhadas desta construção, um pouco por todo o lado). É no mínimo caricato. A construção é ilegal. É uma construção a demolir. No entanto, foi reconstruída. E é mostrada ao mundo como um exemplo! E num perfil pessoal de uma rede social, aparece a mesma imagem, com a legenda “YES SESIMBRA”. 😲
Pergunto-me: qual é a posição da entidade licenciadora (Câmara Municipal de Sesimbra) sobre esta construção?
E sobre a implementação deste eco-hotel? Qual é a posição política sobre este assunto? Não seria de ser transparente a posição politica e técnica sobre esta matéria? E à semelhança de outros projectos (como por exemplo o estudo de ordenamento da Avenida da Liberdade - Sesimbra que, em Maio de 2006, a CMS apelava para a participação de todos, mesmo não sendo obrigada a fazê-lo, mas apenas por considerar que aquele projecto alteraria para sempre a imagem da entrada da vila)? Procurar ouvir a opinião pública? Não irá este projecto alterar a imagem, a paisagem do Cabo Espichel, para sempre? Não será merecedor de uma partilha pública, que não apenas uma casa ilegal que enquanto exemplo, poderá ser exemplar para a consolidação de outras igualmente ilegais e a demolir?
Consultei depois o site da Câmara Municipal de Sesimbra. E sobre o assunto, a Câmara tomou conhecimento na reunião de 22.Janeio.2020, do parecer da Divisão de Planeamento e Estratégia Urbanística sobre, e cito: “Estudo de Impacte Ambiental do Empreendimento Turístico ETOSOTO”. E na reunião de 22.Abril.2020, voltou a tomar conhecimento sobre o teor da Declaração de Impacte Ambiental (DIA) emitida pela CCDR-LVT sobre, e cito: “ETOSOTO, Ld.ª – licenciamento de empreendimento turístico (ECO HOTEL), no Casal da Azoia”.
A Câmara tomou conhecimento, desconhecendo-se a posição política do executivo eleito, sobre a matéria. Curiosamente, o parecer da Divisão de Planeamento e Estratégia Urbanística é o único que não é público. E para os sesimbreses, será porventura o parecer mais importante. E aquele que deveria ser publicitado em todo o lado. Não com a imagem de uma construção ilegal recuperada mas com imagens de projecto, por exemplo, alçados conjunto ou imagens 3D (como se tornou habitual para a publicidade de diferentes projectos urbanísticos).
E porque o tempo é o regulador dos momentos certos, não posso deixar de falar no Aqueduto. Diz a notícia do site da Câmara que o objectivo da obra do Aqueduto é o de “restabelecer a linha de água, desde a nascente, na Azoia, até à Casa da Água”. E informa que “a parte subterrânea do aqueduto será reabilitada posteriormente”.
Ora a propriedade do ETOSOTO integra parte do aqueduto e um troço subterrâneo com pelo menos, três câmaras de visita. Diz o relatório do estudo de Impacte Ambiental – Fase de Estudo Prévio (pág. 160) e que cito: “O terreno da ETOSOTO é interceptado por um aqueduto que abastecia o Santuário da Na Sra. do Cabo, bem como as populações e terrenos adjacentes. Esta infraestrutura embora apresente indubitável interesse patrimonial não possui estatuto de protecção, estando apenas salvaguardada como infraestruturas de abastecimento de água com respectiva servidão. Não obstante, neste troço as infraestruturas e câmaras de visita apresentam-se preservadas e são um ponto de interesse”.
Aparentemente, (pelo menos nos documentos públicos e disponibilizados) nenhuma das entidades consultadas refere a existência de uma estrutura do século XVIII. Em nenhum dos documentos disponíveis (excepto no relatório do promotor que mencionei) é alertada a necessidade de protecção e preservação. Será possível ignorar ou omitir, a existência de património do século XVIII ?
Mas, e as obras do Aqueduto que estão a decorrer? Irão contemplar a recuperação das câmaras de visita e do Aqueduto que está em terreno privado? E quais serão as obras que numa fase posterior, irão recuperar a parte subterrânea do Aqueduto? E esta intervenção será executada em terreno privado?
Será que está assegurada a cedência do troço de Aqueduto que está dentro da propriedade da ETOSOTO, ao património municipal?
E as câmaras de visita? Serão também elas rebocadas “com argamassa de cal e areia, semelhante à que originalmente” as revestia? Aparentemente contra a ideia do promotor que diz serem um ponto de interesse e que as mesmas se apresentam preservadas. E será que essas câmaras de visita, sendo estruturas exteriores, fazem parte do conjunto de obras que estão em curso? Tantas e tantas perguntas. Aguardemos. Pelo tempo certo. 😉
Com toda a certeza que existirão respostas para todas estas perguntas e que, todas as situações estarão acauteladas, salvaguardadas e protegidas. Mal seria se assim não fosse. Afinal, trata-se de património do século XVIII e que é de todos, mesmo atravessando uma propriedade privada. E perdoem-me a ousadia de questionar. Mas a busca de conhecimento também se faz questionado. Especialmente quando a falta de respostas é evidente.
E lanço o mesmo desafio: fotografem o Santuário do Cabo Espichel. E o Aqueduto, como todos conhecemos, com aquela imagem. Para que a nossa memória colectiva possa perdurar nas gerações futuras.
Porque corremos o risco de virem a perdurar no tempo duas imagens: a imagem da recuperação efectuada na segunda década do século XXI, devolvendo ao Aqueduto a sua imagem original e, a imagem que faz parte da nossa memória colectiva, de pedra sobre pedra... mas em terreno privado e apenas conservada como ponto de interesse... do próprio empreendimento e provavelmente inacessível ao cidadão comum.
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