AQUEDUTO DO CABO ESPICHEL - SESIMBRA

Numa visita em que participei às pegadas de dinossauros existentes no Cabo Espichel, alguém que participava na visita (tal como eu), comentava que seria uma pena se as pegadas desaparecessem. E a resposta não se fez esperar: “Teremos de as apreciar enquanto temos o privilégio de as poder observar. Porque será o vento, o sol, a chuva e o desgaste provocado naturalmente, que as farão desaparecer. Esperemos que seja daqui por muitos anos”. 

Depois daquela declaração, comecei a pensar nas construções que constituem o próprio do Santuário do Cabo Espichel. E aquele carácter frágil, sobrenatural e cénico que o Cabo Espichel possui é graças ao vento, à chuva, ao sol e ao desgaste das próprias construções. É aquela imagem devoluta, amarela, cinzenta, agreste, de ruína, de pedras e cantarias caídas ou que ameaçam ruir, que lhe conferem a magia de outros tempos que só conseguimos imaginar, através da leitura de textos antigos e pequenos registos em desenhos. Aquela imagem do Cabo Espichel é nossa e faz parte da “memória ou imaginário colectivo”. Pelo menos dos últimos cem anos. Para mim, e sei que esta será uma afirmação altamente controversa, imaginar o Cabo Espichel com as ruínas reconstruídas e rebocadas seria um atentado à memória colectiva e à identidade daquele lugar. E é talvez por isso, que o Cabo Espichel é tantas vezes escolhido para cenário cinematográfico e fotográfico. 

Lembrei-me da Carta Internacional sobre a conservação e restauro dos sítios, adoptada em 1964 e comummente designada como “Carta de Veneza”, que veio aplicar um conjunto de medidas que visavam a salvaguarda, conservação e valorização de conjuntos ou sítios que não integravam a classificação de «Monumentos».

E lembrei-me de Kevin Lynch, o urbanista e escritor que introduziu em meados do século XX o conceito de “imaginabilidade”, explicando que seriam as características “que estão relacionadas com os atributos da identidade e estrutura mental que conferem a um objecto físico… uma grande probabilidade de evocar uma imagem forte num dado observador”. E das palavras de Joaquim Moura Flores quando referia que eram estas características que nos provocavam “o sentimento de perda que experimentamos quando determinado ambiente físico a que nos habituámos é alterado”. E concluía, dizendo que o património continha a “qualidade de configurar aquilo a que chamamos a “memória ou imaginário colectivo”. 

Vem isto a propósito da Recuperação do Aqueduto do Cabo Espichel. Que fique bem claro que não tenho absolutamente nada contra a Recuperação do Aqueduto. Mas com o que acabei de referir, não imagino o Aqueduto reconstruído e rebocado com argamassa. Para mim, será um atentado à memória individual e colectiva dos últimos anos (para não dizer, séculos).

Entendo a necessidade de preservar uma obra do século XVIII que permitia a chegada de água ao santuário, para que os peregrinos, a corte e o clero tivessem água potável durante o período das grandiosas festas (à época, a maior e mais importante do reino de Portugal). 

O que não entendo é o porquê de recuperar a imagem do século XVIII, através e cito: “da consolidação do troço elevado da estrutura; da reposição da cobertura do canal e respectiva cumeeira; da execução de rebocos com argamassa de cal e areia semelhante à que originalmente o revestia”.

Ou seja, a imagem colectiva de um Aqueduto de pedra sobre pedra, amarelo acastanhado, entre a paisagem verde, que nos acompanha até ao Cabo Espichel, passará a ser um elemento liso, frio e rebocado a argamassa… (e apetecível para alguma intervenção mais ou menos plástica).

Para mim, e é só a minha opinião, o Aqueduto seria apenas limpo, reforçado estruturalmente (para durar, pelo menos, mais três séculos) e consolidado nos casos em que se mostrasse necessário. Essa seria a manutenção e preservação do Aqueduto e também, da memória colectiva. 

Porque recuperar, neste caso, não é reconstruir. Recuperar, neste caso, seria apenas conservar. Para que a integridade física do Aqueduto não fosse posta em causa e para que, o conjunto de acções a realizar visassem apenas o prolongar da sua existência. Como memória do passado e que é a imagem presente da memória colectiva.

Mas esta é só a minha opinião. E muitos terão opinião absolutamente contrária à minha. O que é saudável. Significa que Portugal continua a ser um país livre, apesar de estar em isolamento e privado da liberdade de movimentos, fruto deste vírus invisível.

E o novo Aqueduto do Cabo Espichel, reconstruído à imagem do século XVIII, virá a ser com toda a certeza a memória colectiva das gerações vindouras. Quanto a mim, resta-me aceitar a decisão. Mesmo não concordando. 

E não querendo abusar da paciência de quem possa ler este post, lembrei-me agora que alguém me disse que o Castelo de Sesimbra teria sido na sua origem, rebocado. Nem consigo imaginar uma acção de recuperação do Castelo devolvendo-lhe a imagem original (a ser verdade). Mas, se for verdade, fica o alerta. Para que esta ideia nunca ganhe asas e salte deste pequeno post. 😊

E quando estivermos livres (deste vírus 😊), fotografem o Aqueduto que todos conhecemos com aquela imagem de pedra sobre pedra, amarelo acastanhado. 

Para que a nossa memória colectiva possa, também ela, perdurar nas gerações futuras.



FONTE DA IMAGEM: sesimbra.pt

Comentários

Mensagens populares