A PRAIA
Estávamos na praia. Atrás de nós, uma família do norte do país. Mães, pais, filhos e netos. Todos de férias e em família. Dizia uma das mães ao telefone com uma amiga: “tá tosta!”.
Ao nosso lado, espanhóis. Falavam sobre os planos de férias. Alguns deles sairiam para Lisboa, onde iriam passar o fim-de-semana e depois, rumariam a Fátima. Diz um deles, que já conhecia Lisboa e que iria continuar de férias na praia: "si vas a Lisboa tienes que comer bacalau!"
Do outro lado, um grupo de rapazes brasileiros. Entre nós e o mar, um rapaz e uma rapariga jogavam vólei. Talvez fossem belgas. Foi quando um dos brasileiros perguntou, em inglês, se podia jogar com eles. E de repente, aquele que era um jogo de vólei entre dois amigos belgas, transformou-se num jogo de vólei entre adolescentes de diferentes nacionalidades. Porque rapidamente outros se juntaram ao jogo. Num convívio perfeito, sem diferenças, sem preconceitos.
Dei por mim a pensar: que grande exemplo para o mundo é a praia.
Numa praia estamos quase nus. Como diria Homero estamos “apenas com as vergonhas cobertas”. De certa maneira, apresentamo-nos iguais a todos os outros e de algum modo, vulneráveis. E convivemos todos no mesmo areal, no mesmo mar, debaixo do mesmo sol, com o mesmo vento. Crianças, adultos, velhos. Todos juntos, “apenas com as vergonhas cobertas”. Não pensamos em raças e em religiões. Nem pensamos em todas aquelas palavras que terminam em “fobia”. Somos apenas pessoas desnudadas. Sem classe social, sem conta bancária, sem nada que nos faça pertencer a um qualquer grupo da sociedade. E o que é mais fantástico é que toda a gente se respeita. Toda a gente respeita o outro e o espaço do outro. E é capaz de ajudar alguém que se sente mal ou que caiu com uma onda. E é capaz de tomar atenção a crianças que não são as suas. Para já não falar no facto de toda a gente se ‘aliviar’ dentro de água. Na mesma água onde nos banhamos. Na mesma água onde brincam crianças, Na mesma água, com mais ou menos pirolitos…
Estou nestes pensamentos (que já incluíam doenças de pele, doenças disto e daquilo…) quando chegas do banho e me dizes: vês ali aquela rapariga dentro de água? Veio de muletas. Estão ali na areia. Estás a ver? Respondo que sim, estou a ver a rapariga e as muletas. E tu, enquanto te deitas na toalha: Repara quando sair da água.
Sento-me na toalha, de frente para o mar. O jogo de vólei já acabou. A rapariga está ao banho, à minha esquerda. As muletas estão caídas muito perto da rebentação. O mar não está especialmente calmo. A rebentação é bastante forte, com vento. Vejo a rapariga a sair de dentro de água. Devagar. Olho. Não consigo dizer uma palavra. A praia fica em silêncio. O meu olhar percorre o areal. Todos estão atentos à rapariga que sai do mar. Quando volto a olhar, vejo-a ao pé-coxinho, como se corresse. Depois de várias tentativas, consegue apanhar uma das muletas. Equilibra-se. E agora que já tem um apoio, apanha facilmente a outra muleta. Respira fundo. Com a ajuda das muletas que se enterram na areia a cada passada, chega à toalha. Está sozinha. Vira-se de costas para a toalha e deixa-se cair, sentando-se. Arruma as muletas ao seu lado direito e deita-se na toalha. O meu olhar volta a percorrer o areal. Todos estão em silêncio. Pensativos. Nunca tinha visto nada assim, penso.
Olhei para o mar. Aquele mar quente e azul ondulado... O problema do mundo são os juízos de valor que o ser humano faz sobre ele próprio. Seja pela maneira como se veste. Seja pela forma como anda. Sejam pelos bens que possui. Seja pelo carro que conduz. Seja pelas jóias que usa. Seja por isto ou por aquilo. O problema do mundo são as catalogações que o ser humano precisa de fazer para parecer que tudo está arrumado e no sítio certo.
E quando sairmos todos da praia, com as nossas roupinhas vestidas e caminharmos cada um de nós para o seu carro, entramos na grande lista catalogada de seres humanos. O caminho entre o areal e o carro é a passagem para a realidade. Deixamos de ser apenas seres humanos desnudados, iguais aos outros. E passamos a ser um item de uma qualquer catalogação.
E os brasileiros serão não sei o quê. E os belgas, não sei que mais. E os espanhóis outra coisa qualquer… E a rapariga será deficiente. A rapariga que se banhava sozinha naquele mar, só tinha a perna direita. A perna esquerda tinha sido amputada pela anca.
Que bom seria se na relação com os outros, o ser humano se comportasse como se estivesse na praia. Sem juízos de valor. Sem verdades absolutas. Sem ostentação disto ou daquilo. Sem preconceitos. Apenas e só, como seres humanos.
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