QUE MUNDO É ESTE?

Fico abismada com algumas publicações que vou vendo por aqui e por ali sobre a maior crise humanitária de que há memória. Apetecia-me ter um qualquer poder que chegasse a todos e que explicasse a dor, o sofrimento, a falta de tudo e de todos. Talvez até, se tivesse esse poder, agarrar nesse conjunto de opiniosos e levá-los para o meio da acção, onde tudo acontece, onde a vida é uma sorte.

Mas não tenho esse poder. Tenho apenas um teclado, duas mãos e uma cabeça. E é apenas com isso que vou fazer este simples exercício:

Imaginemos um país, com uma população activa composta por bebés, crianças, adolescentes, adultos, velhos. Imaginemos cidades com centros comerciais, cinemas, habitações, comércios, hotéis, escolas, hospitais, complexos desportivos, jardins, museus, avenidas, ruas, carros, autocarros, comboios. Imaginemos as pessoas no seu dia-a-dia: os professores, os médicos, os polícias, os empregados, os patrões, os desempregados, os aposentados, os doentes, os atletas, os profissionais disto e daquilo. E como em qualquer cidade, todos os outros que não fazem nada e vivem dos apoios do estado. E os pobres. E os ricos. E os sem-abrigo. E os animais de estimação.

Imaginemos agora que um grupo qualquer armado decide provocar e atacar o país vizinho. Imaginemos que o país vizinho reage. Imaginemos que começam a acontecer por aqui e por ali, conflitos armados. E imaginemos que, no próprio país existem grupos organizados armados que aproveitam a situação para roubarem tudo e todos. Inclusive mulheres e crianças para alimentar esse negócio de milhões, conhecido como tráfico humano.

Esse país, com essa população, começa a ter medo. Medo por si. Medo pelos seus. Medo de sair à rua. Medo de ficar em casa. E começam os bombardeamentos. E de repente a cidade está destruída. Não passa de um amontoado de entulho. Ficam sem água. Ficam sem luz. Não há comida. Não há medicamentos. Não há segurança. Há a certeza de que se ficarem em casa a qualquer momento, uma bomba pode fazê-la cair. E há a certeza de que se saírem para a rua, a qualquer momento, morrem. Com um tiro intencional ou com uma bala perdida.

Esta podia ser a descrição do início de um qualquer filme americano de guerra. Mas não é um filme. É real. O que não é real é o que vou dizer a seguir:

Imaginemos que esse país, com essa população activa, é o nosso. E que as pessoas que até então viviam normalmente estão agora cheias de medo do hoje, porque não sabem se o amanhã existe. 

Imaginemos que essas pessoas somos nós: eu, tu, nós, vocês, os nossos pais, os nossos irmãos, os nossos filhos. Os nossos avós. Primos, tios, amigos, filhos de amigos, vizinhos, conhecidos, desconhecidos. E com uma força que nos move a alma de uma fé inabalável, acreditamos no amanhã. E somos invadidos de esperança. Uma esperança firme e absoluta. Que nos faz sentir uma força vinda não sei de onde, que combate o medo e nos faz avançar. E avançamos para onde?, se tudo há nossa volta está destruído? Se os grupos armados estão por todo o lado? Se a rua é um matadouro humano?

Organizamo-nos. Documentos, dinheiro, um casaco, uma mochila. Vamos fugir daqui. Para um país livre. De certeza que nos irão receber. E durante a noite, organizados em grupos, caminhamos com a roupa do corpo e uma mochila às costas. Nós. A nossa família. Os nossos amigos. Os filhos de amigos e familiares. Crianças. Velhos. Bebés. Grávidas. Para trás, fica a nossa vida normal, de pessoas normais. Para trás fica tudo o que construímos. Para trás fica uma profissão. Para trás fica a nossa casa, as nossas coisas (ou que restam delas). Para trás ficam os doentes. Os velhos que já não têm forças para caminhar horas, dias, semanas, até alcançarmos a costa sul. Lá, dizem-nos pelo caminho, vamos conseguir arranjar um barco e fugir pelo mar. E até nos arranjam coletes salva-vidas. 

E de repente a esperança no amanhã acalenta-nos para continuarmos a andar. E tudo parece fácil. É só andarmos. E é com essa fé do chegar à costa sul e ao barco e aos coletes salva-vidas que optamos por seguir em frente, sabendo que podemos morrer. Mas alguém diz: mais vale morrer a tentar viver. E esta frase ecoa nos nossos ouvidos. Já não sentimos os pés, as pernas. Somos peregrinos do hoje. Da vida.

E quando chegamos à costa sul, milhares de outras pessoas, como nós, estão à espera do barco e dos coletes salva-vidas. E cai-nos tudo. Não somos os únicos. Somos um país inteiro. E o barco aparece. Pequeno para tanta gente. Vamos em grupos. Não nos separamos. Os coletes salva-vidas custam uma fortuna, porque nestas crises, há sempre uma oportunidade de negócio. E pagamos. O embarque é de noite. E na praia, na escuridão completa, numa rebentação de ondas que leva e trás o barco com violência, embarcamos. E o barco vai ao sabor da maré. Sem motor, sem remos. Ouvimos o barulho na praia. O barco está cada vez mais longe da costa. As luzes, são pequenos pontos dourados. E de repente somos só escuridão. Sentados, amontoados, abraçados, dentro de um barco de borracha. Alguém tosse. Um bebé chora. Uma criança tem fome. Uma outra criança pergunta se ainda falta muito. Alguém cai ao mar. Não sabemos quem foi. Está de noite. Está frio. O mar está a ficar muito agitado. E passamos a noite à deriva. Sem dormir. Abraçados, choramos em silêncio. 

Amanhece. Continuamos nas mesmas posições. Só se vê mar. Ninguém sabe para onde vai. Ninguém sabe para que lado fica terra seca. Ninguém sabe nada. O barco de borracha parece estar a vazar. Atiramos mochilas, malas, roupa,… para o mar. Só ficam pessoas e os dois cães e os três gatos. Um dia inteiro debaixo de um sol abrasador. E anoitece. Ninguém comeu. Ninguém bebeu. Ninguém dormiu. Os corpos, uns contra os outros, equilibram-se mutuamente. Já não há esperança. E a fé… qual fé?

E o barco pára. Não sabemos porquê. Demoramos alguns minutos a reagir. Estamos numa praia. Rimos. Choramos. Saltamos. E a fé inabalável ainda cá está. E a esperança também. Caminhamos para a areia seca e deixamo-nos cair. Dormimos profundamente, como se a areia da praia fosse o melhor colchão de cama jamais inventado.

De manhã somos acordados por homens fardados. Falam uma língua que não percebemos. Olham-nos como se fossemos marginais. Separam-nos: homens para um lado, mulheres e crianças para outro. Caminhamos em fila. Falamos entre nós num sussurro. Não percebemos nada. Entramos em autocarros. Chegamos a um recinto vedado com tendas. Dão-nos água e pão. Alguém fala a nossa língua e diz: organizem-se uns com os outros, estamos a tratar das coisas para que não sejam ilegais. Refugiados ilegais.

Nós não somos ilegais. Nós não somos refugiados ilegais. Nós somos pessoas que fugiram da guerra, da fome, do medo, da morte. Mas acatamos a orientação. E procuramos uma tenda. E os que já lá estão explicam-nos as regras: ali há uma casa de banho; ali podem tomar banho; ali fazemos a comida.

Olhamos em redor. É como se estivéssemos num parque de campismo mas em mau. Nunca pessoas como nós estariam naquelas condições. Mas estamos. E agradecemos. Depois de nos instalarmos tentamos perceber o que se irá passar a seguir. Ouvimos estórias de pessoas que estão ali, naquele parque de refugiados há meses, há espera. Dizem-nos que não podemos sair do parque. Que não nos querem na cidade. E que os senhores de gravata, cheios de tudo, nas suas vidas faustosas, estão em reuniões, a decidir o nosso futuro. 

Pensamos: já não somos nós que decidimos o nosso futuro. Somos refugiados ilegais.

Numa das tendas, onde é distribuída alguma comida, há uma televisão. Ouvimos um senhor engravatado dizer que a solução dos refugiados ilegais será repatriá-los. Ficamos em pânico. Já chegámos até ali e agora querem mandar-nos de volta para o inferno? Pensamos em fugir. E fugimos. De noite. O parque é longe de tudo. Caminhamos horas durante a noite. Nós, os nossos. Ninguém fica para trás. E encontramos milhares de pessoas pelos caminhos que percorremos. São como nós, refugiados ilegais.

Chegamos a uma povoação. Exaustos. Sujos. A roupa é a mesma com que saímos do nosso país. Apanhou chuva, sol, água do mar, areia. Os cabelos sujos e desgrenhados. Ninguém toma banho há semanas. As pessoas olham-nos de lado. Evitam-nos. Alguém grita: marginais! Vão para a vossa terra!

Nós não somos marginais. Somos pessoas normais, que tinham uma vida normal, numa cidade normal, de um país normal. Até ficar tudo invadido de anormalidade.

E caminhamos. Dormimos ao relento. Houve um bebé que nasceu. Ali, na rua. Um velho morreu. E um adolescente foi preso. Não é dos nossos mas vinha no nosso grupo. Passamos a fronteira. Milhares de pessoas caminham. Somos apedrejados. Vaiados. Corremos. Caminhamos fora das povoações. Por matos, ribeiros, montanhas, caminhos de cabras. Dias sem fim. Perto da fronteira, uma barreira em arame farpado. Milhares de pessoas amontoam-se no único portão que existe em dezenas e dezenas de metros da rede em arame farpado.

Ficamos a saber que as fronteiras estão fechadas. Foram fechadas para impedir a entrada de refugiados. De marginais. De terroristas. De portadores de todo o tipo de doenças e perigos. Foi a decisão de senhores engravatados que continuam as suas vidas longe, bem longe desta realidade. Não temos para onde ir. Grupos de pessoas de organizações humanitárias dão-nos roupa, comida, cobertores, abrigo e tentam explicar-nos o que se vai passar. Alguns países irão receber refugiados. Temos que esperar. Temos que nos registar nas listas e esperar. Tudo vai correr bem. 

E pensamos que sim. Só pode correr bem. Tomamos o primeiro banho ao fim de semanas. Mudamos de roupa pela primeira vez em semanas. Dormimos numa cama pela primeira vez em semanas. Nós e os nossos. E as crianças. E os bebés. E os velhos. 

E finalmente somos acolhidos por um país. Um favor que nos fazem para ficarem bem vistos perante a comunidade internacional. Hipoteticamente, somos integrados numa comunidade local. Dão-nos casa. Dão-nos algumas mobílias. Dão-nos algum dinheiro. Dão-nos alguns bens alimentares. Dão-nos um trabalho e inscrevem-nos num curso obrigatório onde iremos aprender a língua local.

Na comunidade existem vários tipos de cidadãos: os que nem sequer olham para nós; os que tentam falar e ajudar-nos; e os outros, os que nos mandam para a nossa terra porque lhes viemos tirar direitos: tirámos-lhes trabalho, recebemos dinheiro que é deles, recebemos casas de borla e mobiladas! E até nos dão comida!

Valha-me Deus. Que mundo é este?

Não consigo descrever o som de um suspiro. Mas foi o que fiz agora, suspirei.

Apenas desejo que todos, sem excepção, que vivem uma vida normal, que são pessoas normais, com hábitos normais, nunca se vejam numa situação destas. Porque no fim, somos todos seres humanos no mesmo planeta. E o planeta é meu e teu e nosso e vosso. E por isso, um ser humano é sempre e em primeiro lugar, um ser humano. Seria bom que todos soubessem na ponta da língua a declaração universal dos direitos humanos. O mais grave disto é que a maior parte dos seres humanos, nunca a leu.

Talvez estejam a tempo. E como as coisas estão, é bom que não deem como garantido aquilo que têm. Nunca se sabe o que pode acontecer com estes fanatismos, patriotismos, xenofobismos, radicalismos, e outros ´ismos' que começam a invadir o mundo e a intervir nas nossas vidas. Normais, de pessoas normais.




















FONTE DA IMAGEM: http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/biblioteca/publicacoes/onu/407-declaracao-universal-dos-direitos-humanos


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