CAMOMILA
E quando damos por nós, nascemos. Numa família. Na nossa família. Nascemos ricos, desenrascados, pobres ou sem absolutamente nada. Nascemos europeus, africanos, americanos ou asiáticos. Nascemos judeus, árabes ou cristãos. Nascemos numa democracia, numa república, numa monarquia ou num regime totalitário. Nascemos num hospital, em casa, dentro de água ou na rua. Nascemos rodeados de médicos, de câmaras de filmar e telemóveis, de todos os cuidados e mais alguns ou nascemos sozinhos. Nós e a nossa mãe. Somos levados para casa. Ou doados. Ou abandonados. Ou institucionalizados. Crescemos com tudo. Ou com nada. Num país livre ou num país em guerra. Num país rico ou num país pobre. Numa mansão ou numa barraca. Ou na rua. Crescemos com amor ou com ódio. Vamos para a escola de carro, bem vestidos e protegidos. Com a mochila nova cheia de livros e lápis novos. Ou então vamos a pé, descalços, sem nada, por meio de tudo e de todos. E não sabemos se chegamos. Ou se voltamos.
E tornamo-nos adultos. Com as cabeças cheias de tudo e de nada. E fomos educados. Com valores que nos definem enquanto seres humanos. E somos diferentes. Um ser humano europeu é diferente de um ser humano africano, asiático ou americano. E vice-versa. E não é só uma questão de raça ou religião. É todo o universo que nos rodeia. São as pessoas que nos rodeiam, são os acontecimentos bons e maus que nos marcaram. São o ter de tudo em excesso ou o não ter absolutamente nada.
E num mundo cada vez mais global, sabemos o que existe para lá da nossa realidade. Há os que têm tudo e há os que não têm nada. Há os que começam a trabalhar aos 30 anos, depois do curso, do Erasmus, do Interrrail, de umas férias pelo mundo para conhecer outras culturas. E há os que começaram a trabalhar com 6 ou 7 anos, para não morrerem à fome. Ou porque foram obrigados e escravizados. Há os que abandonaram os estudos e foram apanhados pelas teias marginais. Há os que foram vendidos, violentados e mortos.
E vamos vivendo. Expressando a nossa dor, a nossa indignação, a nossa revolta, o nosso ódio, o nosso amor, a nossa compaixão, a nossa solidariedade. Com paciência e compreensão. Ou pelo contrário, sem paciência e sem qualquer tipo de complacência. Vamos vivendo com ambição, com sonhos. Ou completamente desprovidos de vontade do que quer que seja. Ou revoltados e cheios de raiva, sedentos de justiça, de uma justiça que não é cega e que é quente.
E depois ligamos a televisão. E dentro do nosso universo que consideramos normal, assistimos boquiabertos ao outro mundo que nos entra casa dentro. Com imagens que não são nossas. Com frases que não são nossas. Com atitudes e vontades que não são nossas. Com conceitos e teorias que não se encaixam no nosso mundo.
E como temos a ilusão de estarmos longe daquelas realidades, brincamos. Brincamos com as guerras, com as bombas, com os refugiados, com as mortes. Achamos graça ao Trump. Rimos com o passarinho Hugo Chávez que fala com Nicolás Maduro, pousando-lhe no ombro. E assistimos de longe, sim de muito longe, à força Bolsonaro. Afinal há todo um oceano a separar-nos.
E olhamos para nós. E rimos. Fazemos piadas parvas sobre o Bruno de Carvalho. Sobre a Cristina Ferreira. Sobre o PIB. Sobre o «banco bom» e o «banco mau». Sobre o Benfica. Sobre os casos da justiça. Sobre os erros do vídeo-árbitro. Sobre a roupa que o Primeiro Ministro veste. Sobre as armas que desapareceram e voltaram a aparecer. Sobre os submarinos. Sobre o aeroporto do Montijo. Sobre as declarações dos ministros. Sobre os fogos. Sobre as praxes. Sobre o Marcelo... Sobre tudo o que para nós é apenas a nossa simples realidade, afastada de todas as outras realidades que olhamos longinquamente, indignados.
Um outro mundo que não é o nosso está a crescer assustadoramente. E nós, pessoas de um continente em paz, de um país seguro, continuamos as nossas vidas, como se nada estivesse a acontecer. E até conseguimos ignorar as notícias. Não são notícias do nosso mundo.
O nosso mundo é cor-de-rosa com laivos de vermelho. E o problema do momento é o orçamento de estado para 2019. E os aumentos salariais. E os aumentos das pensões. E as greves dos professores. E dos enfermeiros. E os taxistas. E o custo dos livros escolares. E o IVA da electricidade. E a idade da reforma. E as guerras partidárias entre esquerda e direita. E os comentadores de tudo e de todos. E as reportagens disto e daquilo. E a demissão do ministro. E a geringonça. E as “fake-news”. E…
Até me falta o ar!
Vou mas é beber um chazinho de camomila 😉.
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