SOLIDARIEDADE

De uma maneira geral, os povos espalhados pelo mundo são solidários. Assistimos quase diariamente a actos solidários e por vezes até, heróicos, quando se mostra necessário ajudar quem precisa. Estou-me a lembrar por exemplo do resgate da gruta na Tailândia.

Portugal e os portugueses não são excepção. E quando a desgraça nos bate à porta, mobilizamo-nos com ajuda. E em cada desgraça, aparecem sempre não sei quantas contas de solidariedade nas quais podemos deixar o nosso donativo. E deixamos. E há sempre alguém que diz: “estou para ver onde é que vai parar este dinheiro e quem é que se vai abotoar a algum”.

Vem isto a propósito da reportagem da Ana Leal sobre as reconstruções das casas que arderam em Pedrogão. O que é que aconteceu? Os portugueses (do continente, das ilhas e emigrantes) contribuíram com donativos para ajudar aqueles que na presença de uma catástrofe natural (?) perderam tudo o que tinham.

E o nosso governo apressou-se a tentar encontrar uma solução que permitisse que a ajuda chegasse a todos. Mas que mecanismo permitiria saber se os apoios que viessem a ser dados seriam efectivamente atribuídos às pessoas com casas de primeira habitação? Fácil: as finanças fariam a prova dessa condição atestando que aquela era a morada fiscal da família afectada pelos fogos.

Lembrei-me de uma declaração do então Presidente da República Jorge Sampaio: «o problema de Portugal é que os portugueses acham que a Lei são meras sugestões. E cada um por si, faz a sua interpretação e aplicação». E eu pergunto: e não é essa uma das maiores características do português? O interpretar e encontrar soluções? Aquilo a que chamamos de desenrascanço? 

Voltemos aos fogos. O que a Lei diz será qualquer coisa do tipo: cada proprietário terá direito a apoio do estado desde que prove que aquela seria a sua morada fiscal. A lei não diz: desde que prove que aquela seria a sua morada fiscal antes do dia do fogo!

Pegando nas palavras de Jorge Sampaio, qual foi a interpretação? Vamos alterar a morada fiscal e ficamos todos com as casas reconstruídas! 

O que é que aconteceu? Alguém que morava no Algarve há anos, já tem a casa reconstruida. Bastou-lhe alterar a morada fiscal. E famílias que viviam noutras casas há anos? Bastou que um membro do agregado familiar alterasse a morada fiscal e já está! 

Estão a cumprir a lei? Claro que sim. Mentiram? Claro que sim. E a Lei proibiu que se mentisse? Claro que não. 

Apenas estão a utilizar os apoios de solidariedade do estado, dinheiros que em primeiro lugar resultam dos nossos impostos (e de muitos milhares de donativos), para benefício próprio. 

«Qual é o mal?», perguntam alguns. E outros até dirão «otários foram os que não alteraram a morada!» 

A questão desta posição é civilizacional. Ou se quiserem, é uma questão de princípio, de educação. 
Arrisco dizer que esta é mais uma daquelas notícias que irá desaparecer dos noticiários e da opinião pública. Parece que nestes casos, quando envolve dinheiros, ninguém é culpado de nada (e podia mencionar tantos casos que desapareceram das noticias!) 

E daquela senhora que vive num quarto alugado e daquele outro senhor que vive num sofá emprestado, continuarão por lá, até à próxima reportagem, se existir. E se existirem.

Quem me dera ter o dom de saber fazer letras e canções revolucionárias que unissem mais uma vez os portugueses num acto solidário. E desta vez era bem mais simples. Não era preciso dinheiro, nem materiais de construção, nem electrodomésticos, nem bens alimentares. Bastava exigir justiça, gritando a plenos pulmões. 

E já agora, uma hipótese de solução: bastará averiguar as datas dos pedidos de alteração de morada fiscal e verificar se as mesmas ocorreram uma hora, um dia, uma semana, um mês, depois do incêndio. E porque o mundo é digital, utilizar o Google Maps para ver o que eram efectivamente casas antes do fogo. 

Mas isto não está escrito na Lei. Poderá ser feito? Então não pode! Basta que haja vontade. Afinal as entidades governamentais também são compostas por portugueses que como todos os outros têm aquela característica diferenciadora: o desenrascanço. Basta interpretar o que aconteceu, interpretar a Lei, e ter bom senso.

E a propósito de bom senso, partilho aqui uma estória pessoal:
Há alguns anos, lembro-me de ter defendido numa reunião que a Lei sendo omissa, deveria ser interpretada caso-a-caso e com bom senso. A resposta que tive nessa reunião foi: «o bom senso não vem na lei!» 

E bom senso, não vem de facto na Lei. Ou se tem, ou não se tem. 

Numa missão que parece impossível, caber-nos-á a todos nós, que nos indignamos com estas notícias, lutar contra este mundo perverso do chico-espertismo!

E porque já vai longo este desabafo, termino com as palavras do último senhor, que continua com a casa por arranjar: «há coisas mais importantes; o importante é estar cá eu e a minha família toda».



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